Eventos climáticos foram determinantes para que eu deixasse Campo Grande, como a estiagem que contribuiu para os incêndios no Pantanal em 2020, cuja fumaça se alastrou pelo Estado, e a tempestade de areia ocorrida no ano seguinte. Mesmo morando na Capital por 20 anos, nunca me adaptei aos longos períodos de tempo seco. Estava decidido a ir embora, o que ocorreu em fevereiro de 2022.
Deixei a capital de Mato Grosso do Sul rumo a Porto Alegre (RS). E nesta terça-feira, 7 de maio de 2024, presencio a maior inundação da história da cidade, com a cheia do Guaíba. O nível da água está em 5,08* metros. Vários bairros estão alagados, inclusive onde moro. Algo parecido só havia ocorrido em 1941, quando a enchente atingiu o pico de 4,76 metros, recorde quebrado na noite de sexta-feira, 3 de maio. O registro mais alto foi de 5 metros e 33 centímetros, na manhã de domingo (5).
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As semelhanças entre o que ocorreu em MS e a calamidade atual no Rio Grande do Sul ficam restritas apenas em serem eventos com influência do clima. As consequências são completamente distintas. O cenário em boa parte do RS é de catástrofe, 417 dos 497 municípios foram afetados. E o pior, deve levar semanas para se normalizar. O Aeroporto Internacional Salgado Filho, por exemplo, só deve voltar a funcionar no fim do mês.
O local onde moro em Porto Alegre parecia estar livre de consequências mais graves. Até esta quarta-feira (8), aqui no RS, 100 pessoas perderam a vida, 372 se feriram, e há 128 desaparecidos. São 163.720 desalojados e 66.761 cidadãos em abrigos. Muitos perderam tudo, com seus lares completamente tomados pela água*.
O cenário mudou na tarde de segunda-feira (6), quando foi desligado o sistema que impedia o alagamento do bairro onde eu moro, Cidade Baixa, e o vizinho Menino Deus. O desligamento da casa de bombas foi seguido por um pronunciamento do prefeito Sebastião Melo (MDB) pedindo que os moradores destes locais deixassem suas residências.
A declaração divulgada nas redes sociais da Prefeitura de Porto Alegre desencadeou verdadeiras cenas de filme.
Quase todos os moradores decidiram sair de seus apartamentos praticamente ao mesmo tempo. As ruas foram tomadas por pessoas entrando em carros com malas, sacolas, e animais de estimação. A trilha sonora de toda a agitação foi de cachorros latindo, gatos miando, buzinas, sirenes de veículos da segurança pública, e helicópteros que sobrevoavam constantemente.
Enquanto muitos se foram, sigo em casa. No meio da correria, ajudei uma idosa de 91 anos, Dona Rosa, que mora sozinha, a recuperar a calma durante o momento de pânico instaurado.
Minha relativa tranquilidade foi baseada em um mapa divulgado por pesquisadores da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS) indicando as áreas que iriam alagar. As águas não chegariam em nosso prédio, mas ficariam próximas.
Neste momento, vivemos sem abastecimento de água potável, como mais de 70% da cidade; sem luz, e na expectativa de o alagamento aumentar ainda mais. Não há água mineral nos supermercados próximos, muitas das prateleiras estão vazias. Alguns nem abriram hoje.
A minha família tem um plano de contingência caso o pior ocorra, diferente da Prefeitura de Porto Alegre, o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) e da concessionária de energia (CEEE). Está evidente que a administração pública municipal não se preparou para catástrofe que vem sendo anunciada desde 2023, por meio de temporais com intensidades inéditas e transbordamento do Guaíba perto de níveis históricos.
A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um real sequer em prevenção a enchentes no ano passado, segundo reportagem do portal UOL. A situação ocorre mesmo com o departamento que cuida da área tendo R$ 428,9 milhões em caixa.
Desde que a tragédia no Rio Grande do Sul se anunciava, com chuvas constantes e volumosas em áreas de rios que deixaram rastro de destruição e desembocam no Guaíba, não deixei de pensar nos eventos climáticos históricos em Mato Grosso do Sul e, agora, no Rio Grande do Sul.
Tanto em Campo Grande, após a tempestade de areia, em outubro de 2021, quanto entre os gaúchos neste momento, a declaração é a mesma, independente da idade dos entrevistados: “Nunca vi algo parecido com isso na minha vida”.
Em algumas horas, posso me juntar à estatística dos que tiveram de deixar as suas residências. Apesar de ainda estar no meio do caos, penso no futuro, numa possível nova mudança, e a resposta para o questionamento: existe lugar seguro no Brasil, talvez no mundo, livre de sofrer com desastres climáticos, cada vez mais constantes?
*Matéria atualizada às 12h25 do dia 8 de maio para atualização e acréscimo de informações. De acordo com boletim divulgado às 12h desta quarta-feira (8) pela Defesa Civil do Rio Grande do Sul.