O início da década de 80 marcou uma forma única de viver no Brasil e em parte do mundo. No rádio, sons como os Ebony and Ivory de Paul McCartney e Stevie Wonder contrastavam com a Blitz, Rádio Táxi e Barão Vermelho. A liberdade era reafirmada na arte e a diversidade ganhava a sociedade, que começava a se abrir de maneira única para as mulheres, como as que passaram a integrar o corpo de segurança dos estados.
Naquela efervescência, que marcava a abertura política brasileira, a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul abriu o primeiro concurso com vagas para mulheres. Na primeira turma, de 1982, estava Lécia Mara Reis de Oliveira, filha de um militar e entusiasta da força. “Eu fui soldado aos 27 anos. Meu pai foi militar e me incentivou para entrar na carreira. Vivemos um tabu a ser quebrado, por sermos as primeiras mulheres a compor uma instituição que só aceitava homens na época”.
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De cabeça erguida e ciente do papel pioneiro, Lécia permaneceu sete anos na PMMS. Em uma instituição que prima pela hierarquia e obediência, acredita não ter sofrido machismo. “Não sofri machismo na época, considerando que nós demonstramos o nosso trabalho. Na verdade, tenho orgulho de quebrar fronteiras e de ter aberto espaço para as mulheres que viriam a seguir nessa carreira”.
Pelas rondas realizadas nas ruas de Campo Grande aprendeu um pouco de tudo e, principalmente, a importância da segurança para a população. “Nós éramos treinadas para usar os meios necessários para garantir a segurança e garantir a paz. Fizemos um curso de formação de soldados exclusivamente mulheres e saíamos em patrulha pelas ruas da Capital”.
Soldados de saias não eram uma visão comum no Mato Grosso do Sul de 1982, mas Lécia e as companheiras preocupavam-se menos com o choque do que com a necessidade de trabalho. “Foi emocionante usar a farda e proteger a população. Nós usávamos cassetete e armas, porque nosso papel era o de proteger a sociedade”. Sobre o choque para a sociedade da época, a ex-soldado pesa a ação do tempo. “Acredito que, na época, tudo era questão de costume. Falo isso, pois era novidade tanto para Polícia Militar, quanto para os homens policiais. Logo, precisávamos entender e ter paciência para conquistar o nosso espaço também, e isso não viria do dia para noite”.
Para dar leveza ao ofício, Lécia carregava a menina que cresceu livre, subindo em árvores, que adorava tomar banho por córregos e rios entre pescarias ao lado de primos na cidade de Aquidauana, distante 109,9 quilômetros de Campo Grande. “Em resumo, tive uma infância saudável e, sobre a profissão, penso que é preciso acreditar e batalhar pelos sonhos, porque ninguém pode falar que você não é capaz. Precisamos ter disciplina e perseverança para conquistar o nosso espaço”.
Hoje aos 65 anos e mãe de dois militares do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul, a ex-soldado recorda dos bons tempos como Policial Militar, mas admite ter virado a página. “Não tenho saudade, e sim boas lembranças. Acredito que tudo tem o seu tempo e sua contribuição naquele momento. Aprendi muito servindo a Polícia Militar como profissional e, principalmente, como pessoa. Com certeza, só o fato de participar da turma pioneira feminina da Polícia Militar, é motivo de muito orgulho para mim e para minha família”.