No artigo “Sartre, Camus e o quiproquó existencial”, o jornalista e filosofo Mário Pinheiro fala sobre o existencialismo e a vida de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir. Famosos pensadores do século XX, eles mostraram que resistir é preciso para fazer a diferença e construir algo melhor.
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“Resistir é preciso, sem ela somos moscas sobrevoando o resto da sopa num prato sujo. É a resistência real que nos faz viver”, conclui Pinheiro. “Enfim, o período dos pensadores existencialistas é exemplar no que diz respeito à resistência contra um louco no poder, mas se o povo não fizer sua parte, o continuísmo e a mentira vai perdurar”, recomenda, sem mencionar os nomes dos políticos brasileiros em evidência.
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“Jean-Paul Sartre nasceu num bairro burguês de Paris, em 1905. Foi educado pelo avô que era professor aposentado. Sempre teve do bom e do melhor, a mãe era pianista e ele cresceu num ambiente protegido, alicerçado e embalado pelos livros clássicos. A figura paternalista lhe fez falta, pois o pai morreu sem ver o filho dar os primeiros passos. Da mãe herdou a música, a simpatia pelos livros”, relembra.
“Em 1940, Albert Camus chega em Paris, conhece a capital e os pensadores desta época. Nesta cidade ele se sentia estrangeiro. Dramaturgo e escritor, Camus não conheceu o pai, Lucien, que morreu no início da batalha na primeira guerra mundial. Argelino de nascimento, teve uma infância paupérrima, miserável, foi educado pela avó, a mãe era analfabeta. Sua ascensão na literatura e filosofia se deve por sua garra e brio”, cita.
Confira o artigo na íntegra:
“Sartre, Camus e o quiproquó existencial
Mário Pinheiro, de Paris, na França
Jean-Paul Sartre nasceu num bairro burguês de Paris, em 1905. Foi educado pelo avô que era professor aposentado. Sempre teve do bom e do melhor, a mãe era pianista e ele cresceu num ambiente protegido, alicerçado e embalado pelos livros clássicos. A figura paternalista lhe fez falta, pois o pai morreu sem ver o filho dar os primeiros passos. Da mãe herdou a música, a simpatia pelos livros.
O laço burguês não colava e ele abraça pouco a pouco o pensamento que vinha da fenomenologia de Husserl, Bergson, Hegel e outros filósofos alemães. O grande amigo de internato e de universidade, Raymond Aron, dizia que Sartre tinha uma teoria para cada dia, um gênio, além de dramaturgo e escritor, praticava boxe, natação e também tocava piano.
Ele renuncia tudo da burguesia, jamais adquiriu bens em seu nome. No meio da década de 1920, o baixinho vesgo conheceu Simone de Beauvoir. Ela, também burguesa, nasceu em 1909, anticonformista, vinha da escola privada das freiras. Quando ela visita o quarto de Sartre, podre, enfumaçado, cheio de bitucas de cigarro pelos cantos, sujeitou-se a viver e trocar os mais ricos diálogos de convivência. Ela tinha admiração por ele e pretendia, como abelha rainha, sugar do conhecimento dele.
Intransigente, Sartre rejeita tudo que a burguesia defende, se engaja em movimentos de cunho político, foi prisioneiro de guerra dos alemães, foge usando a astúcia, vira resistente. Com o sucesso das vendas de livro, aposenta-se da educação. Seu livro “A Náusea” ficou três anos parado na editora a espera de um título.
Em 1940, Albert Camus chega em Paris, conhece a capital e os pensadores desta época. Nesta cidade ele se sentia estrangeiro. Dramaturgo e escritor, Camus não conheceu o pai, Lucien, que morreu no início da batalha na primeira guerra mundial. Argelino de nascimento, teve uma infância paupérrima, miserável, foi educado pela avó, a mãe era analfabeta. Sua ascensão na literatura e filosofia se deve por sua garra e brio. Ele não teria tido sucesso sem a ajuda de seu professor de filosofia, Roger Grenier, que o incentivou.
Em 1943, Sartre publica sua obra mais importante, “O Ser e o Nada”, ensaio de ontologia e fenomenologia, centrada sobre o indivíduo. Nesta obra ele critica a má fé de uma mulher, onde ele demonstra que é possível mentir a si mesmo. “O Ser e o Nada” ensina sobre a vida cotidiana intelectual parisiense de 1940, expõe as vísceras da realidade. Mas, um estudo aprofundado sobre sua obra denuncia um lado obscuro de Sartre, onde ele faz menção à natureza masculina na literatura como elemento fálico.
Beauvoir então publica “O Segundo Sexo”, e inverte a lógica sartriana ao dizer que a sexualidade masculina é a encarnação por excelência do projeto existencial. Ela diz que o corpo do homem, ávido de prazer erótico, age em perfeita coordenação com a consciência transcendental, quando deseja se jogar, lançar-se ao outro sem perder sua autonomia. Tanto Sartre quanto Beauvoir empregam a metáfora de um ato violento. O casal nem sempre foi pacífico. Os dois tiveram seus amantes, vida à parte.
Entre os membros que formam o círculo existencial, ninguém se diz pai da corrente existencialista. A peça teatral “Os Justos”, de Camus, teve mais de cem apresentações na capital francesa, foi traduzida para diversas línguas. Camus era casado e teve gêmeos com a camarada Francine, professora de matemática.
Sartre, que dividia sua vida com Beauvoir, também tecia paixões por outras mulheres e ela por outros homens, mas a que mais pôs medo em Beauvoir, foi a americana Dolores Canetti. Pelo baixinho vesgo, Sartre, ela se mudou dos EUA para a França. Eles passavam temporadas no México e na Itália.
Numa de suas inúmeras viagens aos Estados Unidos, a imprensa perguntou se Camus podia ser considerado um gênio por causa dos romances, “O Estrangeiro” e “A Peste”. Sartre disse que não, que escrevia bem, tinha estilo, mas para ele o gênio era Jean Genet, autor de “A tempestade”, entre outros. Genet, que também é contemporâneo dos existencialistas, foi preso 12 vezes, saiu da delinquência pela porta da literatura com ajuda de Sartre e do cineasta Jean Cocteau.
Mas em 1951, Camus publicou o livro “O Homem Revoltado”, contra as atrocidades de Stálin na URSS. O líder russo era totalitário e Camus era contra o totalitarismo, ele rasgou a ideologia comunista. O homem revoltado é o homem que diz não. Esta faculdade de negação pertence somente ao ser humano, mas no interior da negação existe reinvindicação: a de direitos humanos, de liberdade, contra o absurdo, e é por isso que Camus resgata o personagem Prometeu, da mitologia grega, para explicar o processo dialético.
Isso enraiveceu o defensor do totalitarismo, Sartre, que chamou Camus de “convertido”. Numa das diversas reuniões que aconteciam no apartamento de Paul Nizan, companheiro de escola de Sartre, o clima esquentou, houve discussão por causa da coragem do escritor argelino. Camus abandonou aquele antro e saiu pelas ruas, fumando, convicto de ter feito a coisa certa, já era 1952. O quiproquó começou lá, a inimizade foi selada. Beauvoir até tentou acalmar o fogo, correu atrás de Camus para convencê-lo a voltar. Já era tarde.
Em julho e agosto de 1949, Camus esteve no Brasil para uma série de conferências, conhece e descreve a macumba, os índios, os brasileiros e o culto afro-brasileiro. A chuva de repórteres na sua chegada queria saber sobre o existencialismo, isso Camus conta em suas cartas para sua amante Maria Cazarés. Sartre também fez viagens ao Brasil, amparado por Jorge Amado, conheceu a Bahia e várias outras cidades. Ele chegou a dizer numa conferência na Unicamp que o Brasil precisava de uma revolução de sangue de baixo para cima.
Em 1954, a Argélia busca sua liberdade contra os 132 anos de colonização francesa. A guerra explode. Camus fica com os argelinos e defende a independência. Sartre também toma partido pelo fim da colônia, mas isso não salva a inimizade entre eles. Mas Sartre destrói a amizade com muita gente, inclusive Aron, Fidel Castro, Genet, Nizan.
Quando Sartre escreveu a “Crítica da razão dialética”, ele esperava luzes, sucesso, mas ele perdeu até admiradores, e, Aron, que também era crítico, mas de direita, disse que a obra era um tipo de monumento barroco, esmagante e quase monstruoso. Maurice Merleau-Ponty, contemporâneo existencialista, também teve amizade destruída por Sartre assim como o trompetista e escritor Boris Vian.
Sartre e Camus foram dois resistentes. A luta de cada um estava selada, alimentada pela força da escritura, da expressão, da crítica, pela ocupação intelectual do espaço social através do teatro e da literatura. Quanto a Beauvoir, uma mulher incrível, ela gostava de se sentir única. Ela se engaja no movimento feminista em 1970 e sua obra “O Segundo Sexo” se torna o motor de arranque, de propulsão para as mulheres. O feminismo contemporâneo procede do segundo sexo. Mas a mulher política desta época, que esteve nos campos de concentração e viu os pais e o único irmão morrerem de fome, frio e maus tratos pelos alemães em Auschwuitz, é Simone Veil. Ela se tornou juíza num ambiente masculino, machista, e mostrou seu profissionalismo, seu lado mais humano até obter respeito da classe masculina que dominava todo debate.
Resistir é preciso, sem ela somos moscas sobrevoando o resto da sopa num prato sujo. É a resistência real que nos faz viver. Enfim, o período dos pensadores existencialistas é exemplar no que diz respeito à resistência contra um louco no poder, mas se o povo não fizer sua parte, o continuísmo e a mentira vai perdurar.”