Celso Bejarano
Exatos 60 anos atrás, em 31 de março de 1964, uma terça-feira de sol, o então presidente brasileiro João Goulart, do PTB, foi tirado do poder e, desde ali, até 1985, período de duas décadas, o país foi chefiado de modo repressivo pela ditadura militar.
Aqui em Campo Grande, à época ainda cidade de Mato Grosso, a conspiração teria sido respaldada por entidade submissa aos interesses dos grandes fazendeiros da região que havia sido fundada um ano antes, em 1963.
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A chamada Ademat (Ação Democrática Mato-Grossense) firmou conexão com o Exército, força que teria, inclusive, ofertado armas ao grupo tido como paramilitar. A missão da sigla ruralista era monitorar, perseguir e prender pessoas à época tidas como subversivas, comunistas por elas discordarem do golpe militar.
Entre os aliados do Exército, juntaram, além dos donos de grandes latifúndios, banqueiros e exploradores da carne bovina. Uns deles viraram, depois, políticos, como prefeito da agora capital de Mato Grosso do Sul [estado separou-se de Mato Grosso em outubro de 1977] e, ainda, mais adiante, chefe do executivo estadual.
Informe acima é roborado por declarações de Lairson Ruy Palermo, advogado, coordenador do Comitê Memória Verdade e Justiça de Mato Grosso do Sul e a trama é narrada, também, conforme apurou O Jacaré, em tese de mestrado, defendida em 2018, por uma historiadora na UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Aqui em MS, a ditadura militar foi imposta sob forte investida das Forças Armadas, segundo apuração do Memória Verdade e Justiça. Há casos, por exemplo, que ocorreram em Corumbá, lá na linha de fronteira com a Bolívia, em que um navio foi usado como cárcere que trancava e torturava pessoas tidas como subversivas, contra o regime forçado.
Em Campo Grande, jornal impresso foi destruído e os maquinários jogados dentro de um córrego. Em Bela Vista, cidade sul-mato-grossense, acampamento habitado por ao menos mil famílias foram escorraçadas do lugar.
Também em Campo Grande, um grupo de famílias paraguaias que por aqui morava desde 1952 teria sofrido violações de direitos simplesmente porque tinham imigrado para cá como meio de escapar do governo do país vizinho, de Alfredo Strossner, que assumiu o poder depois de impor golpe.
A ação da Ademat
Mestrado concluído na UFRS, produzido em 206 páginas por Thaís Fleck Olegário, num trecho, descreve o que representava a Ademat no período da imposição e duração do golpe militar. Diz o estudo que quem relatou sobre a missão da entidade foi o general de Divisão da reserva Lucídio de Arruda, então secretário de Segurança Pública do estado:
“A ADEMAT, uma associação ilegalmente constituída, saindo da clandestinidade, constituiu-se na realidade em terceiro partido político no estado. Arrogando-se o direito de nomear, achacar, denegrir e acoimar de subversivo e de corrupto todo o cidadão que não reze pela sua cartilha (dedo duro da Revolução, como é conhecida)”.
Noutro trecho do mestrado de Thaís é contato que, à época do golpe, um publicado supostamente no jornal Democrata fez críticas a associação dos ruralistas e, depois, teve como resposta uma dura ameaça. O jornal funcionava na rua Maracaju, esquina com a Avenida Calógeras, em Campo Grande. Depois do golpe, foi invadido e destruído, nunca mais funcionou.
Diz no publicado, que a Ademat era uma espécie de agência espiã que repassava as informações acerca das atuações dos ditos subversivos ao temível SNI, o Serviço Nacional de Informações, do governo militar.
“No trecho destacado [crítica publicada] pode-se notar uma ameaça feita pela ADEMAT, alegando que mesmo sob o anonimato o autor do texto que a criticava não estaria protegido, pois as identidades de todos os “comunistas” de Campo Grande eram plenamente conhecidas pela organização. Fato este que pode ser confirmado pela informação produzida pelo SNI sobre a entidade em 1971, em que consta a afirmativa de que a ADEMAT havia elaborado um fichário com informações sobre todos os indivíduos considerados “comunistas” em Campo Grande. Desse modo, desde seus primórdios a entidade [Ademat, no caso] já apresentava posicionamentos públicos de radicalização e, mostrava-se disposta a perseguição de adversários políticos”.
Fim do jornal
A historiadora reserva espaço para contar de que modo o jornal Democrata foi destruído: “Após o golpe O Democrata teve sua oficina completamente destruída, a máquina impressora foi quebrada e o material tipográfico atirado no córrego da Rua Maracajú [parte central de Campo Grande].
Em relação à identificação dos culpados pela destruição, o redator do jornal da época, José Roberto de Vasconcelos, em entrevista concedida a Ellen Lima do jornal O Estado de MS, destacou que: […] eu não estava no prédio, mas passei na frente no momento que eles estavam invadindo o jornal. Se eu estivesse lá eles teriam me matado. Quem organizou a invasão foi o pessoal da chamada Ação Democrática de Mato Grosso (Ademat). Eles jogaram as máquinas num córrego, quebraram tudo. Foi uma punhalada nas minhas costas. Era patrimônio do povo, para criar o jornal nós tivemos que vender rifa entre os ferroviários de Campo Grande. Aquilo era sangue do povo. Foi um ato de barbárie”.
Ainda no estudo acerca da existência da Ademat é citado a eventual parceria arriscada e ilegal: a de que o Exército era quem mantinha o poderio bélico da entidade ruralista, que agiu na clandestinidade de 1963 a 1985, justo período comandando pela ditadura militar.
“Diversos elementos podem ser analisados no memorando, primeiramente a afirmativa de que a ADEMAT atuou junto ao Exército “de armas na mão” realizando prisões, detendo “em massa os apátridas”. A origem de tais armamentos é comentada no documentário “Golpe Militar 40 anos depois: olhares de 2 Mato Grossos”, na película, Alarico Reis D‟Ávila afirma que a ADEMAT foi armada pelo Exército, isto é, que o Exército forneceu armas a civis.
Por sua vez, Wilson Loureiro, à época deputado estadual pela UDN descreve que: o general comandante da região [9ª Região Militar, com quartel em Campo Grande] mandava convidar os deputados, os líderes da UDN aqui, médicos, para ir ao quartel general. Na véspera da Revolução, a gente estava sempre lá no salão do general e naquela noite, que a gente sabia que ia eclodir, a gente estava lá, inclusive o general mandou que o oficial do dia mostrasse uma quantidade de armamento, que nós poderíamos lançar mão se necessário”.
Teria integrado a Ademat, segundo relato do advogado Lairson Palermo, dado que consta no estudo da mestre que estudou a criação e a razão da Ademat, o ex-senador e ex-prefeito de Campo Grande, Lúdio Coelho [morreu em 22 de março de 2011] e José Fragelli, ex-governador no período do Mato Grosso uno, que morreu em abril de 2010.
Relatório do MPF
As supostas violações dos direitos humanos aparecem num relatório preparado entre 2010 e 2012 pelo Comitê Memória Verdade e Justiça de Mato Grosso do Sul. Nele consta as movimentações da Ademat.
Além disso, a apuração narra o histórico do navio ancorado em trecho do rio Paraguai, perto de um porto na cidade de Corumbá. Ali, diz o relatório, eram torturados, capturados e encarcerados e também perseguidos politicamente empresários, estudantes, políticos e trabalhadores que ousavam contrariar a ideia da imposta pelo regime militar.
A comunidade paraguaia também espionada pela Ademat morava em Campo Grande. À época, em 1964, os integrantes do grupo reuniam-se dispersamente num dos mais badalados bares da cidade, o Gato que Ri, na rua Dom Aquino, entre a avenida Calógeras e a Rua 14 de Julho. Donos do local eram das famílias que tinham fugido da ditadura paraguaia. A desconfiança que afetou os paraguaios surgiu pela suspeita de que eles também poderia agir contra o golpe em Campo Grande.
Em Bela Vista, de acordo com relato do Memória Verdade e Justiça, comunidade de ao menos mil famílias foi despejada do vilarejo onde morava, a São Carlos. À época, uma determinação federal, ordenada pela ditadura, mandou desapropriar áreas situadas a até 150 quilômetros da faixa de fronteira.
“Famílias inteiras foram dali retiradas à força, sem que pudessem contestar com ninguém, de nada. Caminhões do Exército tiraram tudo dali”, disse Lairson Palermo, o presidente do Comitê. Todas as supostas violações que afetaram pessoas e famílias inteiras foram noticiadas ao MPF, em 2014, uma década atrás, contudo, até hoje, 60 anos depois da imposição da ditadura militar, aqui em MS, ninguém conquistou algum reparo.
E o motivo? Para Lairson Palermo, seria esta:
“Existe uma pressão, uma ação política muito forte das Forças Armadas. Nós, hoje, não temos uma correlação de forças suficientes para contrapor a essa investida desses setores reacionários, a força nossa é desfavorável. Existe, também uma confusão na própria sociedade civil, que se volta contra a fazer uma revisão histórica por achar que existam outros assuntos para resolver, como racismo, feminicídio. Acha que o assunto [vítimas da ditadura] não merece atenção”.
Palermo disse, ainda, que se o regime militar já tivesse sido investigado como deveria dificilmente teria ocorrido o episódio de Brasília, conhecido como 8 de janeiro, data da invasão dos bolsonaristas.
Para ele, hoje generais que tiveram participação nas invasões, a época da imposição da ditadura eram praças, tenentes ou sargentos. Punições, se aplicadas antes, impediriam uma tentativa de um novo golpe, no caso.