Em artigo especial para O Jacaré, a advogada Giselle Marques critica a declaração da apresentadora Xuxa Menegel, que defendeu a substituição de animais por presos como cobaias em experimentos da indústria. “No caso de Xuxa, no entanto, ao assistir as declarações que sugerem a utilização de uma ‘raça inferior’, a dos presos, para a produção de vacinas e remédios para a ‘raça superior’, a dos donos das leis, dos meios de produção, eu pensei: ‘Sra. Xuxa, seu pedido de desculpas foi muito pouco’”, analisa.
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“Xuxa precisa se desculpar com os negros, que representam 60% da população carcerária do Brasil. Precisa reconhecer que os negros vieram para este país contra sua vontade, escravizados que foram pelos europeus colonizadores destas terras até então pertencentes aos indígenas, também reduzidos à escravidão e invisibilizados nas estatísticas como ‘pardos’”, pontuou. “Nas fronteiras do Mato Grosso do Sul, o indígena não tem direito nem mesmo a um intérprete nos interrogatórios policiais”, frisou.
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“A atitude de Xuxa, infelizmente, não é isolada. Ela aconteceu na madrugada do dia 27 de março de 2021. No dia 24, o assessor internacional da presidência da República, Filipe Martins, foi flagrado pela TV Senado fazendo um gesto de supremacia branca, um símbolo da institucionalização do ódio. É assim que vai aos poucos acontecendo, no Brasil, o mesmo fenômeno que emergiu na Alemanha: a banalização do mal”, alertou.
“O mal está vindo à tona e “pessoas de bem” são levadas, sem perceber, a condutas de ódio, discriminação, extremismo. Para que o bem aconteça, diz Arendt, é preciso vigilância, cuidar e agir, a fim de que o mal não cresça a tal ponto de ser banalizado, suplantando o bem”, aconselhou.
Confira o artigo na íntegra:
Xuxa e a banalidade do mal
Por Giselle Marques,
Advogada e doutora em Direito.
Uma das celebridades da cena artística brasileira, apontada pela Revista Forbes como detentora de patrimônio líquido estimado em US$ 160 milhões de dólares, o que a colocou como a 11ª atriz mais rica do mundo, Xuxa sugeriu em uma entrevista, a utilização de presos para testes de vacinas e remédios.
No início da entrevista ela diz que entende a utilização de animais para testes de vacinas. Mas, para cosméticos, sugere a forma adotada por países como os EUA, por exemplo, onde a pessoa “ganha por isso”, então não tem problema nenhum. “Acho que existem pessoas, em vários lugares do mundo, que elas falam assim: -eu quero ser cobaia. Eu vou ganhar por isso. Eu empresto o meu rosto, o meu cabelo, e se alguma coisa acontecer, problema nenhum, eu vou ganhar por isso.”
Xuxa não questiona, em nenhum momento, o que levaria uma pessoa, um ser humano, a correr o risco de aplicar cosméticos ainda não aprovados pelos órgãos de vigilância sanitária em sua pele. Quem, em sã consciência, faz isso, se não for movido pela pobreza, pela fome? Xuxa argumenta que “se deve usar mais esse caminho”, e não o que parece mais fácil, como “pegar um macaquinho”. Como se um animal tivesse mais direito à proteção de sua integridade do que um ser humano.
Se não bastasse a monstruosidade de tais afirmações, Xuxa prossegue: “eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim, que pode parecer desumano, mas na minha opinião existem muitas pessoas que fizeram coisas erradas, que estão aí pagando seus erros, num “ad eternum”, para sempre, em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos, sabe?” Segundo a Rainha dos Baixinhos: “acho que pelo menos eles serviriam para alguma coisa antes de morrerem.” Ao que o entrevistador, empolgado, dispara: “verdade”.
Vi primeiro o pedido de desculpas de Xuxa. Pensei: do que será que ela está se desculpando? Foi difícil achar o vídeo original. Os sites de busca e órgãos de imprensa estão divulgando mais o pedido de desculpas. Todos nós estamos sujeitos a erros. No caso de Xuxa, no entanto, ao assistir as declarações que sugerem a utilização de uma “raça inferior”, a dos presos, para a produção de vacinas e remédios para a “raça superior”, a dos donos das leis, dos meios de produção, eu pensei: “Sra. Xuxa, seu pedido de desculpas foi muito pouco”. Esta senhora precisa esclarecer do que está se desculpando. Afinal, do que ela se arrependeu?
Xuxa precisa se desculpar com os negros, que representam 60% da população carcerária do Brasil. Precisa reconhecer que os negros vieram para este país contra sua vontade, escravizados que foram pelos europeus colonizadores destas terras até então pertencentes aos indígenas, também reduzidos à escravidão e invisibilizados nas estatísticas como “pardos”- nas fronteiras do Mato Grosso do Sul, o indígena não tem direito nem mesmo a um intérprete nos interrogatórios policiais.
É inadmissível que uma celebridade considerada “exemplo” para o público infantil, alimente ideias como a de que a vida de um “macaquinho”, de um animal, tenha mais valor, do que a vida e a integridade física de um ser humano, pelo fato desse ser humano estar em conflito com a lei. Quem fez as leis, Sra. Xuxa? Já pensou nisso? A senhora assistiu, na semana passada, o julgamento no qual o Supremo Tribunal Federal reconhece que o retirante nordestino que ousou se candidatar à Presidência da República, o ex-presidente Lula, foi condenado por um juiz “suspeito”? A senhora já pensou em quantas pessoas podem estar presas injustamente?
Segundo o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 41,5% das pessoas presas no Brasil não têm nem mesmo condenação. Por isso, pedir desculpas é muito pouco. A senhora deveria prestar serviços comunitários nas penitenciárias e nos morros do Rio de Janeiro, onde mora, ou melhor, se esconde em mansões, verdadeiras fortalezas, para se proteger dos pobres que ingenuamente a fizeram rica, através da audiência na televisão brasileira e do consumo de seus discos.
A atitude de Xuxa, infelizmente, não é isolada. Ela aconteceu na madrugada do dia 27 de março de 2021. No dia 24, o assessor internacional da presidência da República, Filipe Martins, foi flagrado pela TV Senado fazendo um gesto de supremacia branca, um símbolo da institucionalização do ódio. É assim que vai aos poucos acontecendo, no Brasil, o mesmo fenômeno que emergiu na Alemanha: a banalização do mal, expressão presente na obra de Hannah Arendt, uma das grandes filósofas do século XX.
O contexto social histórico autoritário daquela época merece ser lembrado, e jamais esquecido, especialmente nesse momento em que extremistas passam a defender os mesmos valores professados pelo fascismo. A “hipertrofia do eu”, decorrente do isolamento característico da sociedade de massas, agudizado pelo contexto da pandemia provocada pela COVID-19, cria um cenário perigoso, favorável à emergência da personalidade autoritária, o pai, o “führer”, aquele líder autoritário apto a corrigir as mazelas do inimigo comum: o pobre, o negro, o indígena, o presidiário.
O mal está vindo à tona e “pessoas de bem” são levadas, sem perceber, a condutas de ódio, discriminação, extremismo. Para que o bem aconteça, diz Arendt, é preciso vigilância, cuidar e agir, a fim de que o mal não cresça a tal ponto de ser banalizado, suplantando o bem. Não podemos nos ocupar apenas da razão, pois a racionalidade não foi suficiente para impedir a eleição do maior genocida da história da humanidade. O momento exige cautela, e, principalmente, “reflexão”. O reconhecimento de valor intrínseco a cada pessoa, como decorrente de sua condição humana – independentemente de sua origem, classe social, etnia, ou até mesmo de suas ações, é o mínimo que se pode esperar de um pacto social para este século XXI.
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