Moro em uma cidade formada por uma antiga de vila de pescadores em Portugal. Estamos aqui há cerca de um ano dos seis que vivo nesse país. A cidade, Póvoa do Varzim, tem uma história bonita de pessoas corajosas e habituadas ao risco oferecido pelo mar. Dele tiram o alimento e para ele direcionam o curso da vida. É estranho, contudo, que na Póvoa do Varzim, a morte seja uma lembrança constante.
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Os poveiros costumam fixar nas vitrines dos estabelecimentos comerciais todo tipo de anúncio fúnebre. É comum frequentar um café e degustar uma torrada poveira enquanto pode-se contemplar cinco, seis e já contei doze obituários e anúncios de missas póstumas. Acontece o mesmo nas farmácias, lojas de colchões, padarias ou retrosarias.
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Só pensei nisso há poucos dias, muitos após o coronavírus surgir como notícia banal e distante. Quando as muitas nomenclaturas sobre o vírus e a doença ganharam o noticiário, a vida não mudou em nada. Assisti a chefe do serviço de saúde de Portugal dizer que o vírus não era transmitido de pessoa para pessoa e que não chegaria a este país. Confesso que estava ao lado dos que viam essa situação como uma manobra econômica. Eu tenho muito a dizer sobre isso, mas a emergência sanitária ainda me impede.
Não havia motivos para exageros, porém passar álcool em gel nas minhas mãos e nas mãos do meu filhinho depois de usar o metrô também não faria mal. Quem sabe estariam certos? Tossir baixinho, andar mais na rua e evitar o transporte público também não. Moramos na Póvoa do Varzim, mas escolhi percorrer 90 minutos em transportes públicos para ir e voltar à escola dele. Era a forma de manter os amigos do pequeno.
Na condição de imigrante, ter amigos é raro e preservar relações é privilégio. Com a interrupção das aulas, as relações do meu filho foram as primeiras coisas a serem retiradas pelo Coronavírus. Eu sei que é necessário, claro. Não imagino nada além disso e faço plantão nos aplicativos de comunicação para monitorar o outro, que é adulto e mora no Brasil.
Completamos uma semana de aulas interrompidas. Em princípio era uma medida protetiva com data para ser encerrada em 10 de abril próximo. Agora, após decretar emergência, o governo português não deu sinais da retomada do ano letivo. Meu filho e os amigos têm encontros diários marcados pela tela do computador. A professora dá aula dessa maneira após três dias procurando qual seria o melhor método para manter a atividade das crianças. Não são todas os estudantes de Portugal que têm esse privilégio.
Nem todos têm computadores e o governo pensa em enviar pelo correio os trabalhos escolares. É uma organização interessante, mas Portugal é um país pobre. Vou voltar a esse ponto em outro dia. Há uma semana também é repetido por aqui o pânico de armazenar papel higiênico e comprar além da conta.
Em nossa última visita ao supermercado, não encontramos mais álcool em gel e nem o comum. Máscaras são um luxo. Houve um dia em que o estoque de ovos era menor que o normal, mas isso foi regularizado. As redes implantaram um sistema de controle de entrada, mas não limitaram a quantidade de itens, como já ocorre na Inglaterra. Talvez isso aconteça também por aqui.
Como forma de barrar a transmissão, o governo implantou um sistema de circulação que permite o trânsito, mas limita ao máximo a permanência nas ruas. Pessoas acima de 70 anos não podem transitar, salvo para ir ao médico, farmácias e supermercados.
Os restaurantes foram fechados, mas podem fazer entregas. Cultos e outras atividades religiosas que impliquem em aglomeração estão proibidos. Circular nas praias e outros passeios também. Essa medida foi implantada a última vez nos anos 70, quando Portugal ainda estava sob a ditadura de Salazar. Para os jovens é um fardo. O Coranavírus tirou o lazer, empregos, liberdade e paz.
Houve quem não deu importância e foi ver o mar. Agora, a polícia local discute o uso de drones para identificar quem viola a medida.
Passear não é nosso caso. Criamos na entrada uma zona tampão que serve para desinfecção quando precisamos voltar da rua. Implantamos um sistema de abastecimento, fazemos nosso pão e gerenciamos o lixo. Como já trabalhávamos de casa, não é tão difícil, embora o pequeno ache uma seca (chatice). Ninguém pensa em usar o transporte coletivo, mas ele está lá, com circulação reduzida e sem cobrar para permitir a mobilidade de quem ainda é obrigado trabalhar fora de casa.
Os supermercados implantaram um sistema de distribuição de alimentos para o Corpo de Bombeiros e cadeias de hotéis ofereceram leitos para o pessoal da área médica permanecer em isolamento sem colocar a família em risco. Há várias redes de solidariedade para a distribuição de alimentos, e compras a quem está em isolamento. É um novo desenho de vida onde são revelados vários heróis.
Lógico que fico muito agradecida aos médicos e ao pessoal da saúde, mas não sou menos grata aos operadores de supermercados, do transporte coletivo, das farmácias, aos coletores de resíduos, aos carteiros e aos policiais. Não deixo de pensar também nos professores em todos os níveis e nos pesquisadores, a quem imagino o senso de urgência para o fim dessa situação.
E nesse grupo de pessoas que eu penso quando também me vem à mente os anúncios fúnebres nas vitrines dos estabelecimentos comerciais da Póvoa do Varzim. Penso porque sem o trabalho deles não haverá vitrines o suficiente para abrigar os anúncios fúnebres das vítimas dessa doença.