Desempregada, Fernanda Braga Cabral, 32 anos, divide um barraco de lona com o marido, também sem emprego, e três filhos pequenos, inclusive um com transtorno do espectro autista. A família passa perrengues terríveis com o calor de 40º e a baixa umidade do ar. A falta de luz é frequente no barraco com a ofensiva da Energisa contra as gambiarras.
A família ficou sem condições de pagar o aluguel de R$ 700 após Fernanda perder a vaga no Proinc, o polêmico programa acusado de ser cabide de emprego de cabos eleitorais. Ao varrer ruas, ela garantia um salário mínimo, o vale alimentação e um sacolão todo mês.
Desafios de Campo Grande:
Salas quentes, cheias e sem recursos resumem a educação municipal de Campo Grande
Apesar de “ajuda” de R$ 40 mi e tarifa cara, transporte coletivo segue um pesadelo na Capital
Fila de 68 mil, espera de 12 anos, falta de leitos … doentes apelam a fé para sobreviver ao caos
Enigma desde anos 60, esvaziamento do Centro vira problema sem solução à vista e gargalo
Cabral não conseguiu ser contemplada pelo Aluguel Social, propagada pela prefeita Adriane Lopes (PP), candidata à reeleição. Sem luz, às vezes, ela passa a noite em claro com as crises do filho devido ao calor infernal dos últimos meses. Nem sempre ela consegue garantir o sustento dos filhos.
Às vezes, ela se socorre com uma das 37 famílias que residem na favela, chamada pelos moradores de Comunidade Esperança, ao lado do Residencial Pedro Teruel Filho, na região do Bairro Dom Antônio Barbosa. A favela existe há sete anos. Fernanda conta que uma amiga consegue dividir bolachas com as crianças. A esperança da família é de o marido consiga ser contratado pela frigorífico da JBS, que fica a poucos quilômetros do local e melhore a qualidade de vida.
De acordo com Daniele da Silva, 30, balconista desempregada, a luz e água chegam até os barracos por meio de gambiarra. Mais carrasca com os miseráveis do local, a Energisa vive arrancando os fios e suspendendo o fornecimento de energia, como ocorreu no último sábado (21). As famílias estavam desesperadas com o calor de 37º de domingo.
As famílias acabam se cotizando e pagam um eletricista para providenciar uma nova gambiarra. Alguns tiram o dinheiro do alimento para garantir a luz no barraco. Daniele conta que algumas famílias passam necessidades e dependem de doações de alimentos para sobreviver na comunidade.
A prefeitura sabe da realidade da favela. No entanto, a Agência Municipal de Habitação se limite a pedir aos moradores que evitem a ampliação da favela. No entanto, a realização do sonho da casa própria é uma promessa, mas sem perspectiva.
Na prefeitura, a informação é de que não existe levantamento sobre o número de favelas nem do déficit habitacional em Campo Grande. Há pouco mais de dois anos no cargo, a prefeita Adriane Lopes não tem noção do tamanho do problema.
“A Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários – Emha informa que está realizando um novo levantamento atualizado sobre as ocupações, visto que, nos últimos anos, houve uma mudança significativa na demanda e uma redução das irregularidades. Além disso, outros programas voltados para a habitação de interesse social têm sido responsáveis por melhorar a qualidade de vida dos cidadãos de Campo Grande”, informou, por meio da assessoria.
Uma cidade grande
De acordo com a CUFA (Central Única de Favelas), 46 mil famílias vivem em 61 favelas e aldeias urbanas em Campo Grande. De acordo com a coordenadora da entidade, Letícia Polidorio, algumas existem há mais de 20 ou 30 anos. Contudo, ela não soube informar qual é a mais antiga. A entidade estima que 46 mil famílias vivem em favelas na Capital – o equivalente a população ficaria entre os cinco maiores municípios do Estado.
O levantamento da CUFA contrasta com a propaganda feita por anos pelo ex-prefeito Nelsinho Trad (PSD), de que acabou com as favelas em Campo Grande. No entanto, apesar de ser repetida à exaustão, o mote “uma capital sem favelas” acabou se chocando com a realidade.
Ex-secretário estadual de Habitação e presidente da EMHA nos mandatos de André Puccinelli (MDB), Carlos Marun relembra que o emedebista assumiu a prefeitura em 1997 com 172 favelas. Algumas, como a favela Nova Esperança, começavam no Centro, às margens do Rio Anhanduí, no cruzamento com a Avenida Salgado Filho, e se estendia até o Conjunto Aero Rancho.
Puccinelli implementou uma política repressiva para evitar novas invasões e de construção de moradias para tirar as famílias das favelas. Ao final de oito anos, segundo Nelsinho, restavam 19 favelas. O ex-prefeito garante, por meio da assessoria, que acabou com a favelas em 2012.
Apesar da Capital não ter morros, as favelas não só voltaram, como se espalharam por várias regiões da Capital. A maior de todas fica na ocupação da Homex, que começou a ser regularizada em 2021, ainda na gestão de Marquinhos Trad (PSD).
No local, vivem 1,4 mil famílias. De acordo com Letícia, da CUFA, cerca de 300 a 400 famílias já conseguiram regularizar os imóveis. Graças a ofensiva da Defensoria Pública, do Ministério Público Estadual e da Justiça estadual, a prefeitura conseguiu levar água e energia para todas as famílias.
A dona de casa Cledimar Lúcia Aparecida de Oliveira, 46, reside na Homex há três anos. Ela conta que quando chegou ao local, era uma grande favela, com gambiarras e sem qualquer infraestrutura. Hoje, tem a documentação do lote, energia elétrica, água e esgoto, infraestrutura de fazer inveja a bairros muito mais antigos na Capital.
Os moradores contam com escola, unidade de saúde e linha de ônibus. A única queixa é a grande quantidade de poças d’água deixadas pelas chuvas, que deixam as vias intransitáveis. “Aqui já foi favela”, declara a dona de casa, orgulhosa do novo bairro.
A maioria das casas na Homex são de alvenaria. Poucos são de lona ou de amontoados de madeira.
Para Letícia Polidorio, é preciso uma política habitacional que dê dignidade para as famílias que residem em habitações precárias e em situação de vulnerabilidade social. Ela defende que o próximo gestor municipal, prefeita ou prefeito, se compromete em garantir moradia, atendimento médico e pavimentação para as 61 favelas existentes em Campo Grande.
Para o ex-presidente da Emha, Eneas José de Carvalho, estima que o déficit habitacional de Campo Grande seja de aproximadamente 30 mil residências.
A prefeita Adriane não soube informar, por meio da assessoria, sobre o déficit, o número de favelas nem o número de famílias inscritas no cadastro da Emha a espera de uma casa. A informação é de que está, dois anos e meio após assumir o cargo, revendo os dados.
Apesar de não citar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a prefeita disse que espera obter 696 casas por meio do programa Minha Casa Minha Vida. “Durante a atual gestão, mais de 8 mil processos de regularização foram concluídos ou estão em fase de finalização, como é o caso da Comunidade Homex, a maior ocupação já registrada na Capital, e da Comunidade Mandela”, informou.
“As demais ocupações seguem prazos diferenciados para conclusão de regularização e reassentamentos, mas todas estão incluídas no plano de ação da agência, que busca diariamente viabilizar soluções para atender todas as famílias cadastradas”, informou. No entanto, não sabe ou faz mistério sobre o número de favelas contempladas pelo projeto.
O programa Locação Social contempla 300 famílias. Mais uma vez, a prefeitura se negou a informar quantos estão na fila ou cadastrados para serem beneficiados. A Vila dos Idosos, em obra há dois anos, ainda não ficou pronta e foi incluída na conta. Serão 40 unidades para serem incluídas no projeto de aluguel social.
Enquanto poder público não tem noção do problema, 46 mil famílias, segundo a CUFA, vivem o drama de enfrentar toda sorte de infortúnio em moradias precárias.
E o fim das favelas parece lenda urbana.
O Jacaré realiza uma série de reportagens especiais sobre os Desafios de Campo Grande para a próxima prefeita ou prefeito. E no dia seguinte, as propostas.
Nesta quinta-feira, as propostas para a habitação e favelas.