“A gente não pode se entregar, pede forças para Deus para tocar a vida para frente”, esse o mantra repetido diariamente pelo aposentado Elir Soares Martins, 73 anos, ao longo de 12 anos – e quatro prefeitos – sem conseguir realizar duas cirurgias, nos dois joelhos e em hérnia do umbigo. Ao longo de uma década, o operário viu o problema se agravar, passou a depender de uma bengala para andar e se aposentou em decorrência dos problemas de saúde.
Mais grave ainda, nem recorrendo à Justiça, com a ajuda da Defensoria Pública no início de janeiro deste ano, ele conseguiu realizar a cirurgia. Martins não está sozinho na fila da dor e da vergonha. Cerca de 68 mil pessoas estão na fila esperando por consulta médica, exame ou cirurgia eletiva em Campo Grande, segundo cinco ações civis públicas protocoladas neste ano pelo Ministério Público Estadual.
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A maior demanda é por exames mais complexos, 25.727 doentes aguardam por tomografia (2.921), ressonância magnética com sedação (1.389), radiografia simples (6.196), eletroneuromiografia (1.145) e ressonância magnética (13.356). Na área de ortopedia são 16,5 mil pacientes, sendo 3.424 enfrentando o mesmo drama de Elir Martins, uma fila de espera sem perspectiva e com uma vida marcada pela dor.
Ao longo dos últimos cinco anos, os promotores de Justiça Daniela Cristina Guiotti e Marcos Roberto Dietz, tentaram sensibilizar a Secretaria Municipal de Saúde a encontrar uma solução para o drama dos doentes. Sem sucesso. Não houve avanços nas negociações com Marquinhos Trad (PDT), que deixou o cargo em abril de 2022, e a atual prefeita, Adriane Lopes (PP).
Sem opção, os promotores decidiram arriscar e recorrer à Justiça, apesar da famosa morosidade, para tentar obrigar o poder público a encontrar uma solução emergencial para acabar com a fila de espera e livrar 67.603 doentes do drama da dor diária e da impotência de não conseguir marcar consulta, exame ou cirurgia.
Ações individuais abarrotam Justiça
Sem esperança de ver o problema solucionado pelo gestor da ocasião, doentes estão apelando à Justiça para obrigar o SUS (Sistema Único de Saúde) a obrigar a prefeitura a pagar o exame, a consulta ou a cirurgia na rede privada.
“Por outro lado, o grave déficit no atendimento e no acesso a consultas tem ocasionado, por decorrência lógica, o aumento de ações judiciais individuais propostas por pacientes vulneráveis que postulam o acesso oportuno, em tempo razoável, ao tratamento em ortopedia no âmbito do SUS, fenômeno alcunhado de ‘judicialização da saúde’””, afirmou Dietz, em uma das ações.
“Tais ações judiciais individuais implicam elevado custo para os entes públicos, bem como para o Sistema de Justiça, que é acionado reiteradamente para conceder efetividade ao direito fundamental à saúde, caro ao Estado Democrático de Direito, por sua intrínseca relação com o direito humano e fundamental à vida. Assim, a resolução coletiva ora proposta atende tanto aos interesses da população, que aguarda atendimento com piora do seu quadro de saúde, quanto aos interesses do próprio Estado”, destacou.
“Apesar da situação descrita, os entes públicos ora Requeridos não têm logrado êxito na superação da enorme fila e tempos de espera para acesso a consultas em cirurgias ortopédicas, especialmente nas especialidades consulta em cirurgia ortopédica –coluna, ombros, quadril e mão”, lamentou. De acordo com a prefeitura, em um dos ofícios encaminhados ao MPE, o programa MS Mais Saúde, lançado pelo governador Eduardo Riedel (PSDB), para zerar a fila, teve pouco êxito até o momento. Em parceria com o município, o projeto contemplou 966 pacientes com cirurgia a´te o mês de junho deste ano.
Demanda faz justiça parecer insensível
A auxiliar de serviços gerais Zenaide Rosa de Jesus Watanabe, 64, aguarda por uma cirurgia do ombro, após o rompimento do tendão do braço em um acidente de moto, desde outubro de 2022. O sofrimento dela é maior ainda porque está com ferros na perna e precisa do auxílio de um andador para se locomover.
“Dói muito, às vezes, não aguento levantar o braço, dói muito e não aguento andar”, contou Zenaide. Para realizar a cirurgia pelo SUS, ela precisa de um exame de ressonância, que o médico do CEM (Centro de Especialidades Médicas) solicitou há dois anos. Até hoje, a prefeitura não marcou.
“É uma pouca vergonha, paguei INSS a vida inteira, chego agora no SUS e não consigo fazer uma cirurgia”, lamentou, entre revolta, tristeza e indignação. “Tem gente esperando 10 anos na fila e não consegue”, resigna-se Zenaide, sobre a caótica situação da saúde pública de Campo Grande.
Auditoria encontra fura fila e serviços não usados
A revolta fica ainda maior ao analisar a auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União) na Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande. O órgão federal encontrou 51.343 pacientes na fila de espera por exames, consultas e cirurgias. O tempo de espera chega, em média, a 1.049 dias.
O cidadão vai ficar indignado ao tomar conhecimento que existem serviços, como fisioterapia, com demanda reprimida, mas subutilizado por falta de eficiência no Sisreg (Sistema de Regulação). Das 99,7 mil vagas disponibilizadas na APAE, a prefeitura só usou 12% – 12.073 pessoas. Nesse mesmo período, houve paciente que não aguentou esperar e se socorreu pagando serviço particular.
“As causas da subutilização do sistema de regulação perpassam pelas fragilidades do controle da SESAU em identificar e cobrar de seus prestadores de serviço o devido cadastro das solicitações ambulatoriais no sistema de regulação”, apontou a CGU.
“O alto nível de absenteísmo observado em ambas as formas de avaliação (I e II) pode ser explicado segundo dois cenários possíveis, não mutuamente excludentes: o da inexecução dos procedimentos ambulatoriais (devido ao não comparecimento do paciente ou à indisponibilidade do prestador em realizar o serviço) ou o da negligência por parte do estabelecimento de saúde em confirmar casos de procedimentos efetivamente executados – mediante chave de confirmação”, ponderaram os auditores.
“O primeiro cenário implica baixa capacidade de utilização das vagas disponíveis (baixo desempenho no aproveitamento de serviços de saúde) e representa o absenteísmo. Já o segundo cenário implica falta de aderência informativa, o que gera perda de confiabilidade dos dados e distorção dos indicadores – insumos necessários para a tomada de decisão por gestores e operadores no processo de regulação”, apontaram.
Isso significa que muita gente está na fila, mesmo com o serviço disponível, o que leva o cidadão a concluir que a ineficiência e a incompetência agravam o problema da saúde pública na Capital.
Nem exames urgentes escapam da subutilização
Nem pacientes graves, com problemas no coração ou nas coronárias, que precisam realizar cateterismo, conseguem ficar de fora da fila da agonia. De acordo com a CGU, o tempo de espera pelo cateterismo pode chegar de 153 a 988 (mais de dois anos e meio).
“Portanto, verifica-se que os procedimentos que apresentaram alto nível de absenteísmo (Densitometria, Diagnóstico por Ressonância Magnética, Endoscopia Digestiva Alta Adulto, Atendimento Fisioterapêutico nas Alterações Motoras Adulto e Cateterismo Cardíaco) coincidem com os procedimentos que no cruzamento da produção/mês versus oferta contratada/mês, para todos os meses do ano de 2022, não alcançaram aproveitamento de 100% da meta pactuada no resultado anual”, apontou a CGU.
Outro problema gravíssimo é a o “fura-fila”, pessoas que conseguem marcar os exames sem passar pela longa fila de espera. A CGU concluiu que houve marcação de consulta, exames e cirurgias sem passar pelo SISREG.
“O agendamento não automatizado de solicitações a procedimentos ambulatoriais aumenta a possibilidade de ocorrerem agendamentos indevidos de vagas a pacientes em fila de espera (‘furo de fila’), em desacordo com os critérios de risco e de cronologia”, alertou o órgão federal.
Falta de leitos
Outro problema no sistema público de saúde de Campo Grande é a falta de leitos em hospitais públicos. O Ministério Público Estadual entrou com ação na Justiça contra o município e o Governo do Estado para encontrar uma solução para o problema e uma perícia confirmou que há um déficit de leitos na Capital.
A situação é mais grave após os hospitais Regional de Mato Grosso do Sul e Universitário iniciaram um movimento para sair do sistema municipal. A consequência é a superlotação das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e CRSs (Centros Regionais de Saúde), que funcionam 24 horas e improvisam leitos para manter pacientes em estado grave a espera de vaga nos hospitais.
O curioso é que o poder público não se junta ao MPE e ao Poder Judiciário para encontrar uma solução, mas entra numa guerra para provar que não existe o problema – mesmo ciente da gravidade da situação. Não só é surreal, mas como mostra a falta de sensibilidade com o drama da população campo-grandense que depende do poder público.
Até remédio continua faltando nas farmácias dos postos de saúde. No início do ano, o caos foi marcado até pela falta dos famosos remédios do SUS, como dipirona e diclofenaco. O Jacaré procurou a prefeitura da Capital, mas não houve retorno. Quando houver manifestação da Sesau e da prefeita Adriane Lopes, a resposta será publicada neste espaço.
Desafios de Campo Grande
Esta é a segunda reportagem de O Jacaré sobre os Desafios da próxima prefeita ou prefeito de Campo Grande. O primeiro foi o esvaziamento do Centro. Amanhã, a proposta dos candidatos para tentar solucionar o problema.