Maria Naves chegou aos 70 anos como ícone da cultura sul-mato-grossense por levar a arte local ao Brasil e ao mundo. Como gosta de dizer, “ao enxergar arte em tudo”, a vida passa a ser mais leve. Nas sete décadas de vida, onde conseguiu criar sozinha três filhos, acumula algumas vocações, citando as artes plásticas, a gastronomia e, por que não? O cake designer.
Atuar em várias frentes ocorreu como uma manifestação de bem estar e, claro, sobrevivência. Não bastava a vocação artística para pintar ou esculpir, a necessidade de sustentar a casa bateu à porta quando, aos 33 anos, Maria Naves ficou viúva, tendo três filhos e, ainda, em recuperação de um tumor na hipófise que atingiu uma das gestações. Se Coxim, na época, ainda oferecia pouco suporte de saúde física, para a emocional não havia hipótese. “Permaneci a gravidez toda internada, perdi o marido e isso, claro, gerou uma depressão”.
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Após enterrar o esposo, Maria deparou-se com a falta de estrutura em Coxim para a educação dos filhos e decidiu levar a família para Campo Grande, onde permaneceu grande parte da vida. “Fiz isso para que eles pudessem cursar uma faculdade e, para o sustento, ingresse na gastronomia. Foi bom, eu cheguei a ter uma escola de culinária. Atuava com o Sesc (Serviço Social do Comércio) e com o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), o que gerou destaque, já que eu aparecia com certa frequência em programas na televisão, inclusive o Jornal Nacional”.
No preparo dos pratos, a artista gritava em Maria em esculturas de legumes e criações para a louça. A necessidade de dar vazão à vocação, contudo, esbarrou em certa falta de preparo corrigida com o auxílio das filhas.
“Estava na gastronomia e a arte sempre esteve presente na minha vida, desde criança. Tudo o que eu fazia tinha um toque artístico. No cotidiano, com as minhas filhas já na faculdade, uma em Jornalismo e a outra em Enfermagem, comecei a perceber que não as acompanhava. Passei a sentir uma deficiência em mim e elas me incentivaram a fazer vestibular. Ah, claro que eu quis. Na época, passei para Biologia na Uems (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul). Passei nas duas, ficando em oitavo lugar em Artes, o que foi uma surpresa, já que não estudava há muito tempo”.
Ter opções significa escolher e, por essa realidade, Maria Naves decidiu percorrer o curso de Artes, abandonando aos poucos a gastronomia. “Me especializei em monumentos e esculturas. Assim, foi nascendo o busto da Tia Eva. Como participava de um grupo de questões de gênero na Universidade, mantive o olhar já direcionado para as questões de feminismo, racismo e problemas raciais. A convite de um professor de Jornalismo, o Edson Silva, dei um curso de aproveitamento de alimentos na comunidade e, após ver lá muita coisa que me chocou, decidi fazer ali a minha monografia”.
Das carências da comunidade Tia Eva emergiu a obra emblemática do busto que, até hoje, é referência de Campo Grande. Em conjunto, outros trabalhos com os moradores ajudavam a desmistificar o local. “Quando decidi atuar lá, com cursos de teatro de papel, cheguei ser discriminada até pelos docentes do curso de Artes, que consideravam a comunidade perigosa, mas não era e nunca foi. O que vi ali eram pessoas carentes e nós trabalhamos. Trabalhamos com dignidade, resgatei com eles a história da cerâmica, ensinei a construir um forno. Foi bom conviver com uma pessoa centenária, a dona Geraldina que, na época, tinha 102 anos, estava lúcida e contente com o que estávamos fazendo”.
Como a arte é dinâmica e oportuna, Maria começou a fazer retratos das pessoas da comunidade.
Dos relatos dos integrantes da comunidade, ganhou forma a estátua da Tia Eva, mulher de rosto cheio das imaginações dos moradores. “Após mais de 50 desenhos, comecei a dizer para o professor Edson que um deles parecia a Eva e ele me provocou sobre a escultura. Foi emocionante quando as pessoas da comunidade o viram. O busto foi feito sem dinheiro, como pudemos. Existe lá uma placa como se tivesse sido encomendado. Nunca foi, a comunidade nunca recebeu nada”.
Após muito tempo e vivência, Maria Naves esteve a frente a um episódio de violência que a fez mudar de país em busca de paz. “Fui assaltada de maneira violenta e fiquei traumatizada. Há um pavor e cheguei ser aconselhada por uma das minhas filhas que aconselhou terapia e, mesmo assim, decidi sair do Brasil. Escolhi Portugal por conta do domínio do idioma e por ser a porta para a Europa. Para sair, desapeguei de tudo, vendi meu ateliê e recomecei”.
Em terras lusitanas, não deixou de fazer arte. “Faço minha arte, viajo, visito meus netos na Alemanha. Permaneço com uma pessoa eclética. Portugal vive a arte de outra maneira, dá muito valor e, com isso, aprendo muito”.
O aprendizado no Velho Mundo indica a Maria que a necessidade de evolução não está restrita ao Brasil, há muito o que ser ensinado para os “descobridores”. Entre mostras de pinturas e esculturas, Maria notou que a sociedade portuguesa ainda é refém da desigualdade de gênero. “O índice de violência doméstica em Portugal, pelo que eu tenho acompanhado nas mídias, tem sido muito grande e muito grande a violência doméstica. Tenho conversado com muitas mulheres, o que eu percebo é isso quando ela tem independência financeira, é respeitada”.
Enquanto planeja como retratar a realidade de gênero, Maria apega-se à certeza que não a abandonou mesmo nos momentos mais delicados. “A arte me motiva a viver e, por isso que eu falo, que me sustenta. A arte faz muito bem para todos e eu acho que tinha que ser para mim é uma terapia. Se fosse dar um conselho diria: façam arte busquem a arte”.