As mulheres são levadas à exaustão, elas não são guerreiras, mas sobreviventes. Essas frases poderiam ser a definição atual da advogada Cassandra Szuberski, 53 anos, 12 deles atuando em favor das crianças e adolescentes de Campo Grande por meio do Conselho Tutelar. Foi o órgão que ajudou a moldar a mulher em constante construção, mas não somente, também houve uma história comum a muitas meninas brasileiras, a pobreza, a maturidade precoce e a busca pela sobrevivência.
Enquanto atuou no Conselho Tutelar, empreitada encerrada em 2023, Cassandra percebeu o que a vida já havia ensinado: “a violência tem uma perspectiva de gênero” e a mulher representa o percentual de 98% das vítimas. Não parecia, mas a mulher que percorreu ruas ricas ou pobres de Campo Grande para amparar crianças e adolescentes abusados de todas as formas e enfrentar abusadores de todas as classes sociais também usava a própria história para fazer valer a justiça nem sempre disponível a ela própria.
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Cassandra morou sozinha pela primeira vez aos 12 anos, quando ainda morava em Londrina (PR). Dois anos depois, estava responsável pela irmã de cinco anos, quando a mãe, doente, passava por um tratamento em Curitiba. Aquela menina não imaginava a possibilidade de situações tão ou mais desafiadoras ao compor o Conselho Tutelar, de onde saiu doente psicologicamente, acometida de Síndrome do Pânico.
A ex-conselheira revela que a imposição psicológica atravessa todo o pessoal do conselho pela própria natureza do trabalho. “A saúde mental está intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento do nosso trabalho dentro do Conselho Tutelar. Claro, qualquer pessoa que trabalha no Conselho Tutelar, seja desde o motorista, desde o auxiliar administrativo, da equipe técnica que é composta, cada Conselho Tutelar tem um psicólogo, uma assistente social, auxiliar de serviços gerais, a pessoa que nos auxilia fazendo a manutenção do local, arrumando, deixando um ambiente bom para a gente trabalhar e atender as crianças e adolescentes. Então, assim, todo mundo acaba sofrendo diretamente as consequências dos atendimentos”.
Aquele lugar, ressalta Cassandra, não é um hotel, uma localidade onde as pessoas vão de maneira voluntária e, à saída, não existe um bom cenário. “O Conselho Tutelar funciona como última instância da família e da criança, principalmente, da criança ou adolescente, onde ela vai buscar os seus direitos quando nada, nada, nada mais dentro da sociedade, do poder público a assistiu ou garantiu esses direitos. Então, sim, de maneira objetiva, o desenvolvimento do trabalho teve impacto direto nisso…na minha saúde mental”.
Saúde mental de Cassandra foi levada ao extremo com o trabalho no Conselho
As questões relacionadas à saúde mental de Cassandra demandaram intervenções de rotina e a compreensão da necessidade de tratamento. “Eu fiz tratamento, tive, assim, sinto pânico severo ao ponto de eu ter ido parar na Santa Casa, se eu não me engano, umas três vezes achando realmente que eu estava tendo um ataque do coração. Eu achei que eu estava tendo um ataque do coração. Achei que eu estava passando muito mal, e não era um ataque. Tive uma síndrome de pânico, eu tive todos os sintomas”.
Se a saúde demandava atenção, o trabalho a mantinha em alerta, mesmo com a necessidade de disfarçar a roupagem de “guerreira” imposta a mulheres no cotidiano. “Eu, ainda para disfarçar, falei: não gente, foi um exagero meu. Porque além de tudo eu tinha muita vergonha. Eu tive muita vergonha de demonstrar a fragilidade porque todo mundo acha que a imagem que fazem de mim é de uma mulher muito forte. Então eu não queria que essa imagem fosse abalada”.
Como maneira de manter a imagem de máquina de guerra, ninguém estava autorizado a acessar a realidade de Cassandra. “Eu mascarava para os meus colegas de trabalho e para as pessoas ao meu redor. Eu dizia que não, que eu estava super bem. E aí só os meus médicos sabiam mesmo como eu me encontrava. Então eu não falava para eles que eu precisava de ajuda para os meus colegas. Então eu não falava mesmo. Porque, na verdade, é assim, é muito complicado. As pessoas se aproveitam da sua fragilidade emocional”.
Em paralelo às histórias que precisava definir frente à Polícia, à Justiça e às famílias das crianças e adolescentes, Cassandra usava o próprio percurso para conferir uma característica simples, a empatia. “Eu venho de uma família matriarcal. A minha avó ficou viúva muito cedo, ela tinha cinco filhos. Minha avó estava grávida, gestante da minha mãe, minha mãe, que era a filha da caçula quando meu avô faleceu. E minha avó perdeu os bens dela. Ela era uma família abastada até, mas não sabia ler e nem escrever direito. Aí foi perdendo os bens. Foi sendo passada para trás. Além do mais, ela não sabia administrar, nasceu em 1914, morava no interior do Paraná e se viu só, com minha com um aninho”.
Foi pela imposição de ação das mulheres da família que Cassandra percebeu a força que só emana da necessidade e eleva a medida para a convivência com as demais pessoas, como maridos. “Sim, venho de uma família matriarcal. Minha avó ficou viúva muito cedo, minha mãe criou a mim e minha irmã sozinha. E isso impactou minha história. Eu criei minha filha sozinha. Me separei quando a minha filha tinha seis anos de idade. Então, isso acabou resumindo, sim, a minha formação de caráter, de personalidade, de mulher, com uma força hercúlea. Então, existem coisas que eu não admito enquanto mulher”.
Pela maneira que foi empurrada à vida, Cassandra debateu mais cedo temas hoje em voga, em moda ou em mais uso, como a invisibilidade de trabalho doméstico. “O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) fala sobre o trabalho invisível da mulher, mas eu já debati isso com a minha filha, com a minha mãe, com a minha irmã.. lá atrás… lá… com a minha mãe na década de 70 e 80… com a minha filha quando ela era pequenininha… Então, assim… isso impactou a todas nós”.
As questões femininas voltaram a emergir quando Cassandra passou a integrar o Conselho Tutelar. Embora sentisse honra por atuar no órgão, começou a notar uma face da violência que é praticamente única, praticamente feminina. “É muito triste, porque fatalmente, 98% das vítimas são mulheres. Tanto das crianças e adolescentes quanto das mães. A violência tem, sim, uma perspectiva de gênero. Não dá pra dizer que não tem. Tem, sim, uma perspectiva de gênero, inclusive quando nós falamos de LGBTQIA+. Ou seja, 98% das mulheres são vítimas de violência de todo gênero, de todo tipo, seja sexual, patrimonial, psicológica”.
Violência patrimonial ainda é a que mais choca a ex-conselheira tutelar
Nas modalidades de violência destinadas às mulheres, a que ainda choca Cassandra é a patrimonial. “A patrimonial é a que mais nos choca. Há gente que consegue, inclusive, falar que a negativa dos alimentos, não pagar os alimentos em dia. Isso é uma violência patrimonial. Quando o pai fala, eu não vou deixar os alimentos para aquela (ordinária, pilantra) usar o dinheiro do meu filho, da minha filha para pagar botox. Só que você vai ver que o que ele paga de alimentos são R$ 200 para cinco crianças. Então isso é uma violência de gênero. E é uma violência contra a criança. Ele está deixando de criar o filho ou a filha, então assim, existe uma violência de gênero praticada contra a criança e no caso, quando é uma menina ela é de gênero e, no caso, quando é a mulher também ela é de gênero, no período em que você esteve, vamos ver a questão feminina”.
Entre as possibilidades de auxílio para o enfrentamento da violência contra a mulher, Cassandra destaca o suporte psicológico. “A mulher precisa de tratamento psicológico. A terapia. A terapia realmente te dá asas, não é o Red Bull, é a terapia. A terapia vai te fazer enxergar que os seus pais não sabiam tudo, que o seu pai não sabia tudo, que sua mãe não sabia tudo, que você vai ter que aprender por você mesma e vai ter que se fortalecer por você mesma. Que sim, você é capaz, que sim, você pode encontrar um meio de subsistência e se fortalecer. Que sim, você não é gorda e se você for gordinha tudo bem, que sim você é linda, que sim você não é um fracasso, que sim você também pode fracassar, é seu direito, que sim você é maravilhosa. Enfim, através da terapia você consegue encontrar os mecanismos para você poder sobreviver no mundo atual”
Suporte terapêutico, na visão de Cassandra, é uma forma de compreender o mundo sem imposições ou etiquetas. “A terapia dá poder para saber que as suas feridas têm cura, que você não precisa acertar em tudo, que você pode errar também e recomeçar. Que a sua família é importante, mas ela não te define. Que casar é importante, mas um casamento não te define. Que você não precisa ficar no mesmo lugar porque você não é uma árvore. Você tem que ter raízes, mas você tem que ter asas, que é importante você voar e rever a outros lugares. E que é importante também você ter para onde você voltar. E que se você não tiver pra onde você voltar, que você saiba escolher ninhos, onde construir ninhos e carregar seu ninho aonde você estiver. Então, assim, a terapia para mulher é muito importante, muito, muito, muito importante”.
Tal suporte, contudo, não deve funcionar apenas como bandagem em feridas recentes ou consolidadas, pode começar já na infância, na construção e fortalecimento do caráter das mulheres diante da sociedade, defende a advogada. “Esse é o objetivo a ser construído desde a infância. Tem que ser fortalecido desde a menininha, sabe? Quando a menininha é negra, dizer que o cabelo dela é lindo, que dá pra fazer trança assim, que a trança negra é linda, dizer que se a menina é branca, dizer que ela é linda, se ela é japonesa, dizer que ela é linda, sabe? Fortalecer a autoestima, a autoestima é tudo”.
Foram esses fatores que estiveram no passado de Cassandra, quando mergulhou na carreira do Direito. “Eu entrei na carreira de direito porque eu não gosto de injustiças. E eu descobri que dentro do Direito, dentro do sistema, nós temos do poder judiciário, existem muitas injustiças. E aí eu descobri que isso inclusive é injustiça social, que não adianta você querer… Dentro do sistema brasileiro, jurídico brasileiro, existe muita injustiça. Descobri que as pessoas têm fome de saber também. É necessário falar sobre Constituição Federal nas escolas. É necessário ensinar. Não é só o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que tem que ser ensinado nas escolas. As crianças têm que saber os seus direitos, sim. Lógico que têm que saber. Têm que saber que bater é errado, que ninguém não se bate em mulher. Por que não se bate?”, questiona.
“A Maria da Penha é uma lei extremamente defendida. Eu defendo Maria da Penha, absurdamente. E por que se replica que pode bater para educar filho? Não se replica isso. Ninguém tem que apanhar. Nem a criança, nem a mulher, nem o homem, nem o cachorro, nem o gato, nem o periquito, nem o papagaio. Ninguém, absolutamente ninguém. Nem o bandido da polícia, nem a polícia da sociedade. As coisas têm que ser resolvidas, mas sem violência. Então, assim, por isso que eu fui parar no direito, porque eu não gosto de injustiças. Acho que as coisas têm que ser resolvidas, mas sem absurdos. É muito complexo”, diz.
Nessa compreensão, Cassandra também aceita que contribuiu para Mato Grosso Sul como atuante nas políticas de Direitos Humanos. Diz que já atendeu tantas famílias, tantas mulheres, que seria impossível mensurar, não por arrogância, mas pela elevada demanda. “Eu nem sei dizer quantas famílias eu já atendi. E eu prefiro continuar na humildade. Eu prefiro continuar… em silêncio. Eu só posso dizer que foram muitas. Foram tantas que muitas lembram de mim e que eu não lembro de todas. E que tudo eu fiz com muito amor. Muito amor. Foram tantos, que me emociono”.