No julgamento em que atropelou determinação do Superior Tribunal de Justiça, o desembargador Vilson Bertelli, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, citou ações populares protocoladas em 2012 para anular a sentença, que condenou a Solurb, o senador Nelsinho Trad (PSD) e o poderosíssimo empresário João Amorim. Para manter o contrato bilionário da concessionária do lixo com o município, a 5ª Câmara Cível concluiu que não houve desvio nem irregularidade na licitação.
O julgamento foi realizado no dia 9 de fevereiro deste ano apesar do ministro Sérgio Kukina, do Superior Tribunal de Justiça, ter determinado a suspensão na véspera. A audiência ocorreu no dia seguinte e os desembargadores – Bertelli, Geraldo de Almeida Santiago e Alexandre Raslan – anularam a condenação do grupo pelo juiz David de Oliveira Gomes Filho, da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.
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“Contra o parecer, dou provimento aos recursos interpostos para reformar a sentença e julgar improcedente o pedido de anulação da concorrência n. 66/2012 e do contrato decorrente n. 332/2012, com fundamento nas causas de pedir de sobrepreço, ao tratamento do chorume e do desvio de recursos públicos e pagamento de propina a agentes públicos relacionados à concorrência n. 66/2012, nos termos do art. 487, I, do CPC”, determinou Bertelli, conforme acórdão publicado nesta segunda-feira (19).
“Prejudicados, portanto, os pedidos de ressarcimento e de danos morais coletivos. Revogo a antecipação dos efeitos da tutela concedida na sentença”, afirmou, suspendendo o bloqueio de R$ 94 milhões determinado pela Justiça em março de 2021.
O relator teve como base as ações populares protocoladas em 2012 pelo empresário Thiago Verrone de Souza e pelo então vereador Athayde Nery, que apontaram diversas irregularidades no certame. O MPE protocolou a ação civil pública em 2018 após a Polícia Federal revelar os desvios no contrato do lixo, direcionamento na licitação, pagamento de R$ 50 milhões em propina e, inclusive, a aquisição da Fazenda Papagaio com o dinheiro, conforme a investigação proveniente dos cofres municipais.
O desembargador transcreveu trechos da sentença e dos acórdãos do Tribunal da Justiça ao longo de 50 das 83 páginas do acórdão, que salvou a Solurb pela segunda vez.
“Por essa razão, com fundamento no art. 485, V, do CPC, acolho a preliminar de coisa julgada e não analiso as causas de pedir, e, por consequência, os pedidos de anulação da concorrência n. 66/2012 e do contrato decorrente n. 332/2012, fundamentados nos princípios da razoabilidade, conveniência, oportunidade e interesse público na realização de audiência para discussão das minutas do edital e do contrato de concessão; de definição de índices em valores acima dos exigidos pela administração pública como comprovação de qualificação econômico financeira das empresas licitantes; a constatação de insuficiência do capital social das empresas LD Construções Ltda e Financial Construtora Industrial Ltda para participarem da concorrência 66/2012; da limitação irregular do número de empresas integrantes dos consórcios interessados em participar da licitação; da exigência de propriedade ou compromisso de compra e venda de área para atendimento do objeto da licitação”, ressaltou o desembargador Vilson Bertelli.
“O autor afirma a ocorrência de sobrepreço, isso em razão da fixação de pesos excessivamente desproporcionais entre a nota atribuída à proposta técnica e a nota da proposta de preço, possibilitando a contratação de serviços com sobrepreço, bem como da ausência de definição do projeto básico das obras a serem licitadas, isto é sem a informação dos valores de cada um dos serviços a serem realizados pela vencedora do certame. Todavia, ao contrário de suas alegações, conforme proposta de preços, juntada à p. 1.336, foram elencadas na licitação a necessidade de prestação de 15 serviços, bem como a informação do valor de cada um deles e a definição do projeto a ser seguido”, explicou, destacando a tabela do edital de licitação.
“Além disso, em sentido oposto ao consignado na sentença, não é possível presumir o direcionamento em razão dos alegados pesos excessivamente desproporcionais. Isso porque, ao contrário do alegado pelo autor, não há excesso e tampouco desproporção nos pesos utilizados para a proposta técnica e preço, pois eles estão de acordo com a lei”, pontuou.
“Em verdade, não é possível fazer uma análise abstrata. Há necessidade de um exame das consequências concretas dos argumentos apresentados pelo autor e a respectiva prova produzida. Nesse sentido, sequer houve impugnação do edital pelo Ministério Público à época da sua publicação, o qual, inclusive foi elaborado com sua participação (p. 6221 e 6233/6253). Ademais, a outra empresa desclassificada também não impugnou o edital judicialmente”, destacou Bertelli, para reforçar que não houve irregularidade no certame realizado na gestão de Nelsinho em 2012.
“Não procede o argumento exposto na sentença, com o devido respeito ao seu digno prolator, ao afirmar que a atribuição de 5 pontos para o coleta do lixo hospitalar e de 15 pontos para a coleta do lixo domiciliar e comercial tinha do DNA da empresa vencedora na confecção do edital. Essa afirmação não tem lastro na realidade e ofende até mesmo a lógica comum e o próprio Ministério Público que participou da elaboração do edital que, em tese, teria sido conivente com essa manobra”, observou, recorrendo a um dos principais argumentos da defesa do ex-prefeito, de que o MPE participou da realização de todo o processo licitatório.
“Outrossim, não está demonstrado o pagamento em duplicidade do Município de Campo Grande à Águas Guariroba e à Solurb em relação ao serviço de tratamento de chorume. No edital, item 2.1.14.2.11.2 do Anexo II, consta expressamente que o contrato não abrangeria os custos que envolvessem os efluentes líquidos”, anotou, sobre o pagamento de R$ 13,2 milhões em duplicidade pelo chorume.
“Por fim, o autor pede a anulação da licitação e do contrato correspondente, apontando como causa de pedir o desvio de recursos públicos e aquisição de fazenda como pagamento de propina e lavagem de dinheiro pelas pessoas físicas envolvidas. Entretanto, a aquisição de fazendas, pagamento de propina e lavagem de dinheiro também são causas de pedir da ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Estadual, pelos mesmos fatos, autuada sob o nº 0914909-48.2019.8.12.0001”, ponderou Bertelli, sobre a ação de improbidade administrativa que tramita há quase cinco anos na 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.
A ação tramita há cinco anos sem sentença, enquanto o contrato da prefeitura com a Solurb vai completar 12 anos, quase metade dos 25 anos estipulados no edital.
“Ou seja, diante da existência de ação de improbidade administrativa com causas de pedir do desvio de recursos públicos e aquisição de fazenda como pagamento de propina e lavagem de dinheiro pelas pessoas físicas envolvidas, convém analisar o pedido de anulação da licitação e do contrato apenas e tão somente mediante análise do ato administrativo em si e se há comprovação da tese autoral por intermédio destes, pois o que estiver além do edital e do contrato deve ser objeto de análise na ação de improbidade administrativa. Isto é, as condutas particulares de cada réu devem ser analisadas profundamente na ação de improbidade administrativa, ao considerar sua especialidade e direcionamento específico para este fim”, orientou o desembargador. A ação penal tramita desde 2017 na Justiça Federal.
“Não há comprovação suficiente na licitação e tampouco no contrato que indiquem a corrupção ou a aquisição de imóvel. Como já analisado anteriormente, não se vislumbra dados aptos a lesar o patrimônio público na licitação realizada e no contrato pactuado, suficientemente explorado nesta demanda. Aliás, em que pese a exaustiva fundamentação lançada na sentença sobre o esquema de compra e venda da fazenda, fato é que nesta demanda não há comprovação da ligação direta entre tal fato e os termos da licitação e do contrato pactuado”, afirmou o desembargador Vilson Bertelli sobre as conclusões feitas pela Polícia Federal.
“Nesse aspecto, a análise pura dos atos administrativos consistentes na licitação e no contrato questionados pelo Parquet não possuem aparência de fraude ou de dano ao erário de modo a justificar sua respectiva anulação”, concluiu, inocentando os réus das suspeitas de corrupção e pagamento de propina.
“Embora na sentença recorrida a fundamentação para comprovar a corrupção e conluio para direcionar a licitação tenha sido construída com base nos depoimentos prestados pelas partes e suas eventuais inconsistências nas falas relacionadas aos tratos das empresas e à movimentação nas contas bancárias da esposa do réu Luciano e filha do réu João Alberto (para aquisição da fazenda pela sociedade empresária da qual a ré Maria Antonieta possui cotas e não é parte na presente demanda), fato é que os documentos juntados neste processo, mediante análise pura e adstrita ao Direito Administrativo com enfoque nas contratações públicas, não evidenciam o pagamento irregular para a CG Solurb, ou tampouco o pagamento com sobrepreço, ou o prejuízo ao erário em razão do contrato pactuado”, explicou o relator.
“Inclusive, destaca-se um fato não mencionado na sentença, Ana Paula (filha do réu João Alberto, esposa do réu Luciano e sobrinha da ré Maria Antonieta) também é sócia da empresa Areias Patrimonial Ltda, de forma a justificar os pagamentos realizados por ela na compra do imóvel Fazenda Papagaio. Dessa forma, os pagamentos, por si sós, não evidenciam irregularidades aptas a corroborar a tese de desvio de dinheiro público, especialmente porque os pagamentos realizados pelo Município estão dentro da lei e de acordo com o contrato, e a sociedade empresária apontada como parte no esquema do desvio de recursos públicos (e suas respectivas sócias) sequer foram incluídas na presente demanda, pois somente a sócia Maria Antonieta integrou a relação processual”, explicou o desembargador, contestando a tese da PF de que o dinheiro usado no pagamento da propina saiu dos cofres municipais.
“Desta forma, face a fragilidade da comprovação das alegações defendidas pela parte autora na análise estrita dos termos da licitação e do contrato pactuado (já rejeitadas no julgamento das ações populares n. 0038391-94.2012.8.12.0001 e 0038382-35.2012.8.12.0001) aliado ao que ora se decide, visualiza-se que, nem mesmo de forma indiciária, há demonstração da fraude na contratação firmada entre o Consorcio CG Solurb com o Município de Campo”, concluiu.
Para o desembargador, a eventual anulação a licitação seria prejudicial para a sociedade e não para os acusados pelos crimes de corrupção. “De forma semelhante, a anulação da licitação e do contrato acarretam riscos sociais, ambientais e à segurança da população local, decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto contratual, qual seja, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos”, pontuou.
“Por isso, como já frisado reiteradas vezes, nesta demanda não há comprovação de repasse indevido do dinheiro público (não há prova do sobrepreço ou de pagamentos irregulares) e tampouco há comprovação sobre o desvio de dinheiro público. Não há comprovação do alegado benefício no direcionamento, pois da análise estritamente contratual e das normas atinentes à licitação, não há desacordo com a lei. A simples vitória do consórcio CG Solurb no alegado direcionamento pela parte autora constituiria mácula moral (a ser apurada e sancionada na sua demanda específica relacionada ao direito administrativo sancionador, qual seja, improbidade administrativa) e não suficiente para, nesta demanda, anular uma licitação e um contrato administrativo sem a evidência e comprovação da lesão ao erário e diante da execução regular do contrato durante todos esses anos e, inclusive, após o final do mandato de Nelson Trad como prefeito, com sucessão de adversários políticos”, destacou Bertelli.
Sobre a conclusão da PF de que as empresas não possuíam capital social mínimo exigido e fraudaram documentos para participar da licitação, o desembargador sugeriu: “Se eventualmente ocorreu fraude pelas empresas componentes do consórcio, tal causa de pedir e pedido também se submetem ao crivo da moralidade, a serem analisadas em demanda própria contra as empresas e pessoas respectivas, não nesta em que se analisa estritamente a licitação e o contrato dela decorrente, motivo pelo qual é descabida sua análise, nesta demanda”, orientou o desembargador.
O MPE vai recorrer ao STJ para anular o acordão e manter a condenação da Solurb, de Nelsinho, João Amorim, da ex-deputada Antonieta Amorim (MDB), e dos sócios da concessionária, Antônio Fernando Araújo e os irmãos Lucas e Luciano Potrich Dolzan.