Ao decidir abrir sindicância para investigar o desembargador do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), Divoncir Schreiner Maran, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) destacou mais uma peculiaridade dos bastidores da decisão que concedeu prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica para o narcotraficante Gerson Palermo, condenado a 126 anos de prisão e que fugiu.
Chamada de situação “sui generis” (singular), o CNJ aponta que uma servidora lotada em outra Vara da Justiça fez o plantão, apesar de não ser mais do gabinete do desembargador. Além disso, essa mesma servidora pediu para trocar com um colega e assumir o plantão do dia 20 de abril de 2020, data de entrada do pedido de habeas corpus da defesa de Palermo. A situação é detalhada em acordão do CNJ. A movimentação dos servidores foi identificada em inspeção realizada pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça no TJMS.
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“Tal conduta, de forma isolada, não configura infração disciplinar imputável à servidora ou ao requerido. No entanto, tal proceder, somado às demais circunstâncias narradas, demonstra a situação sui generis do presente caso que recomendam na visão da Corregedoria Nacional a instauração do processo administrativo disciplinar para cabal e adequada apuração, para que não permaneçam dúvidas de transparência sobre caso tão rumoroso”.
Questionada sobre a metodologia de trabalho instituída pelo desembargador no plantão judiciário, a chefe de gabinete Silvana Roque dos Santos Delamo esclareceu que o Divoncir sempre designa um dos assessores lotados em seu gabinete para auxiliá-lo nos plantões. Ainda segundo ela, o assessor designado redige as minutas das decisões e, na sequência, submete a minuta à aprovação do desembargador.
No plantão em que foi concedido o habeas corpus para Palermo, o desembargador foi assessorado pela servidora Gabriela Soares Moraes, que desde 18 de abril de 2020 estava lotada na 10ª Vara Cível de Competência Residual de Campo Grande.
“Ao prestar esses esclarecimentos, a Chefe de Gabinete imprimiu cópia da decisão proferida nos autos supramencionados informando que a inicial do nome do assessor que redige a minuta da decisão é identificada no cabeçalho da decisão, após o número do processo, conforme se infere da cópia da decisão abaixo, na qual se verifica, após o número do processo, que consta um G, de Gabriela Soares Moraes”.
Segundo o levantamento do CNJ, entre 21 de novembro de 2019 e 17 de abril de 2020, a servidora Gabriela Soares Moraes substituiu a servidora Nathalia Freire Bezerra de Almeida no gabinete do desembargador Divoncir Schreiner Maran. Ou seja, entre 21 de novembro de 2019 e 17 de abril de 2020 a servidora estava lotada no gabinete do desembargador.
“Embora a convocação da servidora Gabriela Soares Moraes para atuar no Gabinete do Desembargador especificamente durante o Plantão Judiciário não caracterize, de per si, infração disciplinar, causa, no mínimo, estranheza ter sido chamada quando já não fazia mais parte do quadro de pessoal da unidade e que tenha atuado no caso. Isso porque foi relatado pela Chefe de Gabinete que ‘o Desembargador sempre designa um dos assessores lotados em seu gabinete para auxiliá-lo nos plantões’, sendo que, pontualmente, no Plantão do Feriado de Tiradentes, em abril de 2020, entendeu por bem designar a servidora que não mais encontrava-se lotada em sua unidade, mas sim na 10ª Vara Cível de Competência Residual de Campo Grande”.
Conforme informado por Divoncir, a designação da servidora venceu no dia 17 de abril de 2020, mas ela, em ajuste com os demais servidores do gabinete e sob a ciência do desembargador, prontificou-se a trabalhar em um dos dias do feriado prolongado de Tiradentes. Para confirmar, apresentou conversa no WhatsApp.
“Buscando comprovar suas alegações, o reclamado juntou capturas de telas do aplicativo WhatsApp, nas quais é possível observar trocas de mensagens no grupo chamado “Tribunal de Justiça!”. Em dado momento da conversa, em 16 de abril de 2020, é montada a escala do plantão entre os servidores, sendo designada a segunda-feira, dia 20 de abril, para o servidor Fernando e a terça-feira, dia 21 de abril – feriado de Tiradentes, para a servidora Gabriela”.
Porém, a servidora solicitou a Fernando que realizem uma troca. Desta forma, a servidora Gabriela trabalhou durante o plantão judiciário no dia 20 de abril de 2020, data em que protocolado o habeas corpus da defesa de Palermo perante o Tribunal de Justiça.
“Neste ponto, salutar consignar que o referido Habeas Corpus foi distribuído ao Desembargador reclamado tão somente às 21h42, do dia 20 de abril de 2020, fora, portanto, do expediente de trabalho, de modo que a decisão deveria ter sido minutada, em tese, pelo servidor Fernando, no dia de expediente seguinte.
“Coincidência ou não, a indigitada decisão foi minutada pela servidora Gabriela, ou já fora de seu horário de trabalho, ou no plantão do dia 21, que, conforme registros de conversas de WhatsApp acostadas pelo reclamado, seria atribuição do servidor Fernando”.
Na sequência, o desembargador assinou a decisão às 8h11 do dia 21 de abril de 2020. “O que causa espécie, pois nenhuma das outras decisões proferidas durante o plantão foi assinada no início da manhã”.
Os bastidores daquele plantão foram destacados no voto do corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão.
Sem surpresa – Já o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello defendeu não haver “nada de estranho” na organização do plantão.
“No seu voto, o nobre relator questionou ajustes feitos na escala de plantão dos servidores responsáveis por assessorar o Desembargador Divoncir no feriado prolongado em questão, bem como manifestou estranhamento em relação ao assessor escolhido para confecção da minuta. No caso, a servidora Gabriela ficou responsável pelo assessoramento do Desembargador no dia 20 de abril e o servidor Fernando seria o responsável pelas minutas distribuídas em 21 de abril. Para o Corregedor Nacional, a minuta da decisão não deveria ter sido confeccionada pela servidora Gabriela e sim pelo servidor Fernando, uma vez que o processo foi distribuído “tão somente às 21h42, do dia 20 de abril de 2020, fora, portanto, do expediente de trabalho”.
E prossegue: “Não identifico irregularidade em relação a qualquer das alegações sobre quem seria o assessor responsável pela confecção da minuta. Da análise dos autos percebe-se que houve rotineira e normal distribuição e ajuste interno dos servidores responsáveis por cada um dos dias de plantão”.
Para Bandeira, também não se mostra estranho o fato de a minuta ter sido confeccionada pela servidora Gabriela, pois era ela a responsável pelo assessoramento do plantão do dia 20, data em que foi impetrado o habeas corpus.
“Não existe norma explícita ou implícita em relação à divisão interna de trabalho da assessoria nesse tipo de situação, principalmente quando considerado que, naquele momento, em razão da pandemia, todos os membros e servidores do Poder Judiciário estavam se habituando às rotinas do trabalho remoto ou híbrido, modalidades que dificultavam sobremaneira o controle direto sobre o horário de trabalho efetivamente praticado por cada servidor.
O fato do desembargador ter convocado uma servidora do tribunal que já trabalhara em seu gabinete, mas que recentemente se transferira para gabinete de colega, tampouco gera surpresa. Precisando montar um escalonamento para alguns dias de plantão, parece razoável recorrer a servidores conhecidos, ainda que não necessariamente vinculados ao seu gabinete”.
Lamentável – O ex-presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, desembargador Divoncir Schreiner Maran, através de nota divulgada por sua defesa na quarta-feira (27), criticou a abertura de procedimento administrativo pelo Conselho Nacional de Justiça. Apesar disso, diz confiar e estar tranquilo em relação à investigação do CNJ.
“O Desembargador Divoncir Maran vem informar que, apesar de lamentar o menosprezo à independência funcional da Magistratura, deposita sua confiança e tranquilidade na respeitável e íntegra apuração a ser realizada pelo Conselho Nacional de Justiça”, diz a nota divulgada pelo advogado André Borges, responsável pela defesa do desembargador.
O CNJ abriu procedimento administrativo por Divoncir Maran ter concedido habeas corpus ao narcotraficante Gerson Palermo sem ter respeitado etapas para liberar o bandido, como ouvir o Ministério Público, ter suprimido instâncias e não ter exigido exames médicos para atestar que o preso era do grupo de risco para a covid.