Dez anos após a deflagração da Operação Sangue Frio, maior escândalo de corrupção envolvendo desvios na saúde, o juiz Luiz Augusto Iamassaki Fiorentini, da 5ª Vara Federal de Campo Grande, inocentou um servidor federal e uma empresária dos crimes de corrupção e peculato. Eles foram acusados de desvios no contrato do Hospital Universitário para o fornecimento de alimentação aos pacientes, acompanhantes e funcionários.
O outro réu, o ex-diretor-geral do HU, José Carlos Dorsa, morreu no decorrer do processo e acabou não sendo julgado pelo suposto desvio. O Ministério Público Federal pediu a condenação de Dorsa, de servidores e empresários pelo superfaturamento no contrato com a Health Nutrição e Serviços.
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A Polícia Federal descobriu o desvio ao realizar uma devassa nos contratos do hospital a partir da descoberta da Máfia do Câncer, que desviava recursos públicos destinados para o tratamento de câncer nos hospitais públicos, como o HU e o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul Rosa Pedrossian, e o Hospital do Câncer Alfredo Abrão.
“Similarmente, o órgão ministerial aduziu que ao menos entre os dias 28/08/2012 e 14/11/2012, os corréus se associaram e mutuamente colaboraram para novamente dispensar licitação fora das hipóteses previstas em lei, também com vistas à contratação de empresa para o fornecimento de refeições – HEALTH NUTRIÇÃO E SERVIÇOS LTDA –, desta vez contratando-a nos autos do processo administrativo de n. 23447.000727/2012-95, mais uma vez amparado no subterfúgio da falsa emergência”, pontuou o juiz na sentença publicada no dia 27 de setembro deste ano.
O contrato previa, inicialmente, o pagamento de R$ 1,581 milhão pelo fornecimento das refeições. No entanto, o valor teve acréscimo de R$ 1,779 milhão. Conforme o juiz, houve um “dispêndio” de R$ 2,042 milhões.
Dorsa morreu e outros dois réus, Sérgio Tadeu Hergert e Alceeu Edison Torres, ficaram livres de responder pela denúncia. O juiz levou a julgamento a empresária Márcia Cristina da Silva e Melo e o servidor Rodrigo Soares de Freitas.
“Nessa toada, de todo o conjunto probatório existente nos autos, tenho para mim que não foram produzidas evidências suficientes para se chegar a um juízo seguro, para além de qualquer dúvida razoável, de que os réus RODRIGO e MÁRCIA, únicos remanescentes nessa imputação, tenham de alguma forma participado de uma eventual dispensa irregular do aludido procedimento”, pontuou o juiz federal.
“Quanto a RODRIGO, vê-se que nem mesmo trabalhava em algum dos setores pelos quais tramitou o processo administrativo e, conquanto assessorasse o então diretor-geral do HU/UFMS, por quem realmente passaram os documentos tendentes à dispensa da licitação, não há qualquer evidência concreta de que RODRIGO tenha efetivamente agido com o elemento subjetivo necessário”, destacou.
“Depreende-se da prova documental constante dos autos que, em ambos os casos, a solicitação de contratação em caráter emergencial partiu do SNU/NHU/UFMS, cujo administrador era o codenunciado ALCEU EDISON TORRES, e tramitou por outros setores como o DICO/NHU/UFMS, sob a chefia da servidora Artemísia Mesquita de Almeida, até finalmente chegarem ao diretor-geral JOSÉ CARLOS DORSA VIEIRA PONTES”, relatou.
“Logo, não vislumbro qualquer prova no sentido de que RODRIGO tenha influenciado na tomada da decisão pela dispensa da licitação, ou de qualquer forma ativamente participado de qualquer etapa da cadeia de eventos que culminou nos fatos denunciados”, avaliou Fiorentini.
“Do mesmo modo, não há prova cabal da influência ou envolvimento ativo de MÁRCIA nesses mesmos eventos, até porque não integrava os quadros da instituição pública. Sua participação no certame se deu na condição de representante de uma das licitantes, tendo assinado a respectiva proposta comercial, e ainda que pairem dúvidas acerca da quebra da competitividade da licitação, fato é que não há qualquer indício de que tenha colaborado para a criação da alegada situação emergencial”, ponderou.
“Via de consequência, também não há prova suficiente para a condenação pelo delito de peculato, pois a hipótese de que tenham se conluiado com os demais denunciados para que a licitação fosse indevidamente dispensada e o contrato fosse firmado diretamente com a HEALTH NUTRIÇÃO E SERVIÇOS LTDA é demasiadamente fragilizada à luz da precitada conjuntura”, afirmou.
Conforme o relatório, o contrato previa o fornecimento de 52.469 refeições por mês. No entanto, o HU só servia 400 refeições por dia e 12 mil por dia. O total pago teria sido 40,4 mil refeições além do levantado pelo órgão.
“Aliás, rememoro a conclusão da CGU no sentido de que a irregularidade constatada não teria resultado prejuízo ao erário, o que parece ser respaldado pela documentação constante dos autos – notadamente notas fiscais, dentre outras –, que sugerem a entrega das refeições contratadas”, analisou Luiz Augusto Iamassaki Fiorentini.
Antes de analisar se houve desvio, o magistrado fez uma análise filosófica do termo. “Desviar” é um termo polissêmico que tem o significado, para o fim particular previsto no tipo penal em questão, de ‘mudar a direção’, ‘desencaminhar’, ‘alterar o destino’ de um bem, valor ou dinheiro público”, pontuou.
“No caso, não há razoável grau de certeza de que alguma dessas condutas tenha ocorrido, pois o serviço contratado foi prestado e os valores pagos de acordo com o pactuado entre as partes, e não há prova de que tiveram sua direção alterada pelos acusados e acabaram destinados a fim diverso”, destacou. “Pelo contrário, os recursos sempre estiveram endereçados ao pagamento dos itens contratados”, concluiu.
“Se a oferta aceita, e que posteriormente se transformou em contratação, listava preços acima do valor de mercado, isto é outra questão, que não tem o condão de transmudar em ‘desvio’ algo que não tem essa natureza”, comentou.
“No caso em questão, só se poderia pensar em ‘desvio’ se houvesse alguma prova de que os acusados se conluiaram para que esse desvio ocorresse, o que, como vimos, não há”, justificou-se.
“Ou seja, pode ter ocorrido pagamento por valores acima dos que poderiam ser obtidos em regime de competição efetiva, mas não há elementos que permitam concluir que houve um desvio de dinheiro, objetividade jurídica na qual se centra a denúncia, nesse particular”, ressaltou Fiorentini.
“Veja-se que a denúncia sequer discrimina como teria se dado tal desvio, quem recebeu, quem transferiu para quem, qual a parcela do valor que foi ‘desviada’ etc.”, frisou.
“Não há, portanto, adequação típica entre a conduta narrada na denúncia, em relação ao crime de peculato, e o delito imputado, o que afasta a certeza da materialidade”, concluiu.
“De todo modo, certo é que, se não há prova contundente da participação de MÁRCIA e/ou RODRIGO na trama criminosa, não vislumbro qualquer possibilidade de condenação por suposto esquema de pagamento e recebimento de propina”, contou o magistrado.
“Diante do exposto, julgo improcedente a pretensão punitiva deduzida na denúncia para o fim de ABSOLVER os réus RODRIGO SOARES DE FREITAS e MÁRCIA CRISTINA DA SILVA E MELO dos delitos que lhes foram imputados nestes autos, na forma do art. 386, VII do Código de Processo Penal”, determinou o magistrado.
Esta é mais uma ação da Operação Sangue Frio, um dos maiores escândalos de corrupção da história da saúde pública do Estado e teve repercussão nacional. No entanto, o julgamento segue moroso na Justiça federal, sem a punição dos envolvidos nos supostos desvios.