“Queremos para Campo Grande um sistema de transporte coletivo ainda mais moderno, ágil, eficiente, seguro e que ofereça conforto e comodidade aos passageiros e essa nova roupagem começa a ser estabelecida”.
A afirmação de Nelsinho Trad (PSD), ex-prefeito da Capital e atual senador, ao assinar o contrato com o Consórcio Guaicurus em 14 de novembro de 2012 se perdeu no tempo.
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Passados dez anos, o desejo do gestor não encontra eco numa realidade em que pontos de embarque se resumem a uma estaca laranja na calçada e usuários do transporte coletivo são penalizados com atrasos, superlotação e veículos sem manutenção.
Em contrapartida, a tarifa não parou no tempo e, agora, já é pedido o valor de R$ 8, insustentável na rotina de quem tem o orçamento devorado pela inflação, principalmente a dos alimentos. Em março de 2012, o passe de ônibus custava R$ 2,85. Atualmente, a tarifa é R$ 4,40.
Neste findar de 2022, enquanto mais de 40 cidades brasileiras já adotam a tarifa zero, fazendo valer o transporte gratuito como direito previsto na Constituição Federal, a exemplo do SUS (Sistema Único de Saúde), o transporte coletivo segue empacado em Campo Grande.
Há dez anos, desde aquele 2012 em que a prefeitura decidiu por uma nova licitação do serviço, se fala do PAC da Mobilidade, mas a ativação dos corredores de ônibus segue a passos lentos. Lá atras, foi justamente essa possibilidade de receber recursos de R$ 180 milhões do governo federal que sustentou a necessidade de nova licitação. O dinheiro deveria arcar com os corredores, ciclovias e dois novos terminais de integração.
Ao Consórcio Guaicurus, caberia investir R$ 350 milhões ao longo de 20 anos para tecnologia no embarque e desembarque, central de monitoramento com câmeras de vídeo nos ônibus e política ambiental que permitiria a redução de 99% de gases poluentes.
Já o ar-condicionado nos veículos, promessa de campanha de Marquinhos Trad (PSD), irmão de Nelsinho que também foi prefeito de Campo Grande, não era previsto em contrato. Mas a possibilidade de algum conforto animou os combalidos usuários do ônibus na disputa municipal de 2016. Em abril de 2017, Marquinhos, que já era prefeito, chegou a prometer quase a totalidade dos carros com ar-condicionado até 2020. A promessa ficou no campo das ideias.
Na última década, o transporte coletivo passou pela substituição do dinheiro por cartão, que tirou os ônibus da lista de 60 roubos mensais na Capital. O dispositivo também permitiu a integração. Neste tempo, surgiram os serviços de veículos por aplicativos, com grande impacto no número de passageiros. Desde março de 2020, o setor também sentiu o reflexo da pandemia, com a redução da demanda pelo serviço. A média de 217 mil passageiros caiu para 62 mil entre março e junho daquele ano.
Em contrapartida, o Consórcio Guaicurus passou a salvo de multas previstas no contrato, descumpriu exigências do TCE (Tribunal de Contas do Estado), se livrou de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara e ganhou subsídio de R$ 12 milhões por ano.
Em paralelo, tramita na Justiça um pedido do MPE (Ministério Público do Estado) para anular o contrato, previsto para durar até 2032. A ação civil pública chegou à 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos em setembro de 2020, após descoberta de irregularidades no Paraná.
Deflagrada em 2017, a operação Riquixá denunciou a atuação de organização criminosa integrada por empresários de transporte coletivo e diversas prefeituras do País. A quadrilha era voltada à prática de crimes ligados ao direcionamento ilegal de concorrências públicas para a concessão do serviço público de transporte coletivo.
No Paraná, a investigação chegou à delação premiada firmada por Sacha Breckenfeld Reck, que atuou como consultor da prefeitura para realizar a licitação em Campo Grande.
Ele contou, conforme a promotoria paraense, que o edital foi direcionado para manter as empresas que prestavam serviço na época: Cidade Morena, São Francisco, Jaguar e Campo Grande. Uma empresa de Curitiba foi “convidada” para simular concorrência no certame.
Com base nesses indícios, o promotor Marcos Alex Vera de Oliveira pediu auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União), que confirmou as suspeitas de irregularidades, como restrição à competitividade e adoção de critérios favoráveis ao consórcio Guaicurus.