Em artigo sobre “Reação, ação e astúcia”, o filósolo e jornalista Mário Pinheiro faz paralelo entre o atual momento da política brasileira e a mitologia grega. “O homem deve reinventar os valores que perdeu com as promessas vazias de quem fugiu de todos os debates, surfa na falsidade, vive como príncipe, embora passe a imagem de simples asno de presépio”, afirma, sem citar nomes.
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“O Estado, segundo Pierre Bourdieu, assalta o cidadão pelos impostos, impõe suas regras e mete a polícia pra fazer o trabalho sujo. O líder político descaracterizado de caráter navega no que é mais repugnante e indigesto, ou seja, no amaciamento do ego dos fracos e parasitas engravatados pela corrupção e na compra de apoio, cuja finalidade é a autoproteção, blindagem”, pontua.
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“Camus afirma com todas as letras que é preciso rebeldia, revolta, o sentido do limite, e cita o mito de Prometeu na metáfora do mensageiro divino que rouba, mente e ordena aos seres humanos de se munirem de armas”, avalia.
“Está tudo na esfera do absurdo. Para sair deste absurdo e escapar da idiocracia, é necessário reencontrar os valores que fazem da pessoa um ser de excelência, isto é, dotado de consciência, razão, alfabetizado, comedido, vigilante e engajado”, conclui.
Confira o artigo na íntegra:
Reação, ação e astúcia
Mário Pinheiro, da França (*)
Diante da força soberana dos olimpianos, Prometeu tinha uma arma redutável, a astúcia. Ele deveria manter a neutralidade e a prudência diante de Zeus, mas, tomado e dominado pelo rancor e o ódio, ele se vinga, cria a desordem e acaba punido. Na mitologia grega, Prometeu seria o criador do homem.
Ulisses, que não era nem forte nem alto, mas baixinho, segundo a dialética da razão de Horkheimer e Adorno, também era astucioso. Ele teria vencido o gigante Polifeno, mas Polifeno era deficiente visual, grande porque Ulisses era pequeno. Ulisses, quando interrogado por Polifeno, disse que se chamava Ninguém. Quando os amigos de Polifeno perguntaram quem lhe havia furado o olho, ele respondeu, Ninguém.
São mitos. Mitos fazem parte do cotidiano dos gregos, são como parábolas. Prometeu desobedece a Zeus e é punido de forma sórdida por longos anos. Na punição, durante o dia, uma águia desce das alturas e come seu fígado que, durante a noite, se refaz. Há uma semelhança com Penélope que tricota uma colcha durante o dia e a desfaz no período noturno para enganar seus pretendentes. Ela também é astuciosa, segundo a Odisseia.
Ulisses inventa o cavalo de pau para invadir Troia de maneira sutil, como “presente”. Mas o guerreiro grego estava presente no ventre do animal. A punição dos troianos foi ter acreditado que o “presente” era sinal da mudança. No Brasil não é diferente. Não se trata de troianos, mas de um povo que acreditou num falso mito; não era um cavalo, mas um ator condenado por sua instituição pelo discurso e ameaça terrorista, que obteve clemência por seu desequilíbrio; inventor de um ato em que se passou por vítima, mas vítima é o eleitor que digitou o número do burro como se fosse o jogo do bicho.
Troia recebeu o cavalo; o Brasil, o burro. No interior do cavalo, havia soldados para pilhar e queimar a cidade; no Brasil, a família que roga a Jesus e vomita armas, dividendos, lucros, burrices, indiferenças e negacionismo. Frio e sem sentimentos, em vez de esperança de dias melhores, ele plantou a incerteza e deseja colocar brasileiro contra brasileiro numa guerra civil, coisa de psicopata, de genocida.
As raposas que armaram o golpe no Brasil contaram com ajuda do Poder Judiciário, da mídia e do empresariado, usaram de toda astúcia jurídica. A esperteza dos juristas e políticos que prepararam esta armadilha colocou o País num novo regime: a idiocracia.
Na idiocracia, o retardado se torna chefe dos objetivos de afundar e deixar morrer afogados as vozes da oposição, os movimentos sociais, os defensores da floresta, os índios, o pensamento diferente. A semelhança entre idiocracia e nada é igual, os dois são vazios, é o caos, o neon, o abismo, e o que mais vale é crer que a religião estampada na camiseta pode salvar o mandato.
Para promover os valores perdidos, Heidegger clama para o princípio da razão; Sartre, que foi prisioneiro de guerra dos alemães, diz resistência, consciência, engajamento; para Camus a revolta é o ponto de partida para reencontrar a alegria, o tesão de viver, a esperança. O homem deve reinventar os valores que perdeu com as promessas vazias de quem fugiu de todos os debates, surfa na falsidade, vive como príncipe, embora passe a imagem de simples asno de presépio.
Não existe Estado salvador, seu dever é atender as classes despossuídas, excluídas. Mas o Estado, segundo Pierre Bourdieu, assalta o cidadão pelos impostos, impõe suas regras e mete a polícia pra fazer o trabalho sujo. O líder político descaracterizado de caráter navega no que é mais repugnante e indigesto, ou seja, no amaciamento do ego dos fracos e parasitas engravatados pela corrupção e na compra de apoio, cuja finalidade é a autoproteção, blindagem.
Esses parasitas se reproduzem como ratos de esgoto, tornam-se capitães do mato, defendem valores contrários aos desígnios mais importantes e acabam por pegar carona no rabo do ratão e de outras ratazanas. Kierkegaard, o verdadeiro pai do existencialismo, acentuava que a angústia é a vertigem da liberdade.
A liberdade perdeu o sentido no Brasil porque o povo passa a impressão de estar realmente deitado em berço esplêndido, vendo a boiada passar, a fumaça das queimadas cruzarem o céu, sem mexer o traseiro do sofá. A angústia hoje faz parte do cotidiano da vida do brasileiro porque a equipe que dirige o País é incompetente, mentirosa, esdrúxula, descontextualizada, burra, sinistra, negacionista.
Camus afirma com todas as letras que é preciso rebeldia, revolta, o sentido do limite, e cita o mito de Prometeu na metáfora do mensageiro divino que rouba, mente e ordena aos seres humanos de se munirem de armas. Prometeu entrou em conflito com Zeus por ter agido mal. É preciso crer mais na razão, na falta do necessário para se lapidar da crença do falso mito que se criou no Brasil.
O presidente brasileiro é o tirano que consolidou a idiocracia como sistema de fácil compreensão aos que, infelizmente, não fazem diferença entre autoritarismo, fascismo e democracia. A guerra civil se estabeleceu de outra forma. Ela é sutil e deslizou nas famílias por meio do ódio, da negação, da falta de empatia pelo sofrimento do outro.
Por detrás dessa antologia, esconde-se a anta que habita todo eleitor que odeia o livro e prefere a arma numa ausência completa de raciocínio, de pensamento. Arendt chama isso de “obediência cega”, sem reflexão, tanto para os juristas quanto para o povo, e, para o cientista político Jacques Lagroye, o ser humano que aceita a coleira do autoritarismo, sem dar um pio, denomina isso como domesticação (dressagem), como um cãozinho que abana o rabo.
Está tudo na esfera do absurdo. Para sair deste absurdo e escapar da idiocracia, é necessário reencontrar os valores que fazem da pessoa um ser de excelência, isto é, dotado de consciência, razão, alfabetizado, comedido, vigilante e engajado.