Espanto e, até, descrença foram alguns dos sentimentos externados por quem foi instigado a comentar a decisão comunicada nesta quarta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de vetar a vacina CoronaVac. Um dia antes, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello havia anunciado em uma reunião com governadores a compra de um lote de 46 mil doses do produto.
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Não houve tempo hábil nem mesmo para avaliar a logística de aplicação e o veto chegou. “Ele (Bolsonaro) não está pensando nem na saúde pública. Vai aguardar o quê? Uma americana, se a vacina deles (empresa chinesa) foi desenvolvida primeiro? É coisa de doido, maluquice”, resumiu o presidente do Sintss/MS (Sindicato dos Trabalhadores em Segurança Social de Mato Grosso do Sul), Ricardo Bueno.
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“Estou vendo espantada nos meios de comunicação que o governo Bolsonaro, disse que ‘toda e qualquer vacina será descartada por enquanto’ porque não tem comprovação científica. Vejam a contradição, ele incentiva o uso e distribui na rede pública a Cloroquina e a Ivermectina sem nenhuma comprovação científica e, agora, não vai adquirir vacina? A esperança é que início de 2021 já tenhamos vacina para as pessoas do grupo de risco e, até meio do ano, tenha vacina para toda a população. Se o governo não vai comprar vacina, por enquanto, o que vai acontecer com o povo brasileiro? Vamos continuar com a pandemia até quando? Quantas morrerão por isso? Quantas vidas ainda serão perdidas?, questiona Sueli Veiga Melo, professora, vice-presidente da Fetems (Federação dos Trabalhadores na Educação de Mato Grosso do Sul).
A disputa política entre Jair e o governador de São Paulo, João Dória (PSDB) pesou. Quando desautoriza o ministro militar, Bolsonaro fala em traição e diz que não vai comprar a “vacina chinesa do Dória”. O imunizante é produzido pela farmacêutica Sinovac Live Science, de Pequim, em parceria com o Instituto Butatan, que está na hierarquia do governo de São Paulo.
O mesmo produto, contudo, é testado em parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), essa federal. No decorrer da produção deste texto, o ministro general Pazuello ainda não havia emitido nenhum comunicado sobre as declarações de Bolsonaro e um exame confirmaria que o militar está contaminado pelo novo coronavírus. Portanto, em isolamento.
O silêncio de Pazuello contrasta com a condução da reunião de ontem com os governadores, onde ele exaltou a expertise brasileira na condução das campanhas de vacinação e adiantava a inclusão da CoronaVac no calendário nacional de imunização. Tudo amplamente discutido e aceito por Bolsonaro, como teriam dito assessores do governo e do Ministério da Saúde ao portal UOL. Além disso, as 46 milhões de doses anunciadas pelo ministro já haviam sido reportadas na segunda-feira pela assessoria de imprensa do Butantan. Ou seja, não havia novidades que pudessem justificar o bloqueio à vacina chinesa do Dória (e da Fiocruz).
Esses fatos indicam o que Bolsonaro sabia e o que viria a saber. A base o pressionou e houve recuo. Seguidores do presidente o classificaram Pazuello como um Mandetta Militar e, ao menos por enquanto, a única semelhança entre os dois parece ter sido o cargo de ministro e a ascendência italiana. Mandetta disse ao mesmo UOL que Pazuello, por não ser um técnico, apenas obedece a ordens.
Assim, na avaliação do professor e advogado Vanderlei Porto, a fala de Bolsonaro é reflexo de um viés político equivocado. “E ninguém ganha com isso, nem a sociedade e nem ele. Neste momento estamos percebendo que ele passa para a sociedade o descrédito de um presidente, que tem a voz presidencial e que tem um impacto muito grande. Dizer que não vai usar a vacina porque é da China. A vacina vem de uma empresa e nós, aqui, temos o Instituto Butantan como referência e que desenvolve a vacina. Como ficam as pessoas? Elas estão morrendo, estamos em 150 mil mortos e quantos serão no fim do ano. Um presidente deve estimular e favorecer o desenvolvimento de qualquer vacina que venha a beneficiar o País”.
Bolsonaro faz bravata, diz que brasileiro não será cobaia no mesmo dia em que a Farmacêutica Sinovac Live Science comemora não haver reações sobre os testes da CoronaVac feitos no Brasil, Indonésia e Turquia. Há brasileiros testados desde julho. Também há a expectativa de início de outros testes, esses da vacina russa, a Sputink V, em dezembro. Não há como vacinar sem testar e os ensaios clínicos são necessários para conhecer reações adversas, adaptar a composição dos produtos e garantir eficácia, mas o caso da covid-19, a nacionalidade está na preferência de quem apoia Bolsonaro.
É o caso do autônomo Bruno de Oliveira Soares, 27 anos. “Até então tenho apoiado as decisões do presidente e sua equipe e mantenho meu posicionamento em relação às vacinas. Aqui em casa todos escolheram por livre e espontânea vontade esperar pela vacina dos Estados Unidos (Oxford) até os que estão no grupo de risco e continuamos mantendo os cuidados necessários”.
Além de preferência por nacionalidades de produtos, que escondem acordos comerciais em detrimento da saúde coletiva, o discurso do presidente também ecoa para a não obrigatoriedade da vacina. Esse é outro ponto que choca.
“O que temos que dizer à população é que a vacinação não é uma decisão individual. A imunização a uma doença como a Covid-19 – letal e que quando não mata, pode deixar sequelas nos indivíduos infectados – é uma questão de saúde coletiva. Entretanto, essa discussão de governante x ou y sobre a obrigatoriedade da vacina coloca em evidência ruídos de comunicação, uma desconfiança sobre a eficácia da vacina e uma dose grande de desinformação. Infelizmente, estamos vivendo um contexto muito complexo em que as pessoas escolhem no que elas querem acreditar, naquilo que mais lhes convém. Isso sim é uma ditadura, a ditadura da desinformação, da descredibilização da imprensa e do discurso científico”, pondera Fernanda Vasques Ferreira, professora da UFOB (Universidade Federal do Oeste da Bahia), doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)e pesquisadora nas áreas de Comunicação, Saúde e Políticas Públicas.
“É óbvio que só vai ser chancelada aquela vacina que tiver passado pelos protocolos científicos e de segurança. Também por isso não temos respostas dos cientistas que são tão imediatas. Eles precisam de tempo, de teste, de muito trabalho para garantir a eficácia e o menor risco. As pessoas precisam compreender isso”, explica Fernanda.
De fato, há muitos questionamentos. Pazuello permanece quieto, mas o governadores não. Da última vez em que a União não acompanhou o ritmo dos governos para combater a pandemia de covid-19, saiu do Nordeste o trabalho em consórcio para a compra coletiva de produtos, serviços de saúde e para a pesquisa sobre a extensão da doença. Agora, os governadores prometem interpelar o presidente da República na Justiça.
Enquanto não chegam as respostas, a saúde da população será refém da disputa. “Temos dois ‘vírus’ circulando no mundo. Especialmente no Brasil, o da Covid e o da desinformação ancorada em disputadas políticas. Isso é péssimo para a saúde da população. Aí você pode me perguntar: saúde e política não se relacionam? Claro que sim. Se temos hoje mais de 154 mil mortos no Brasil em decorrência da infecção pelo novo coronavírus, essas mais de 154 mil pessoas morreram porque foram ou porque não foram tomadas medidas por parte dos gestores públicos. Há uma descoordenação nacional em relação à pandemia. E qual é o maior dano? À saúde e à vida das pessoas. Então, esse duelo entre personagens políticos em relação às vacinas é inócuo, é vazio”, diz Fernanda.
Sueli Veiga aposta no recuo do mandatário do Planalto. “Lamento muito e espero que, como o Bolsonaro sempre faz, ele volte atrás na decisão até o final do dia. Caso contrário, será um desastre econômico, social e político para Brasil e uma mortandade do povo mais pobre que precisa sair para trabalhar. Os mais abastados, ficarão em isolamento. Os pobres, não. Eles precisarão trabalhar para sobreviver. E serão os que mais perderão suas vidas ou seus entes queridos”.
Até a publicação deste texto, sem haver esperança breve de vacina, o Brasil computava 5.273.954 (cinco milhões, duzentos e setenta e três mil, novecentos e cinquenta e quatro) pessoas contaminadas pelo Sars-Cov-2. Desses, 154.837 (cento e cinquenta e quatro mil, oitocentos e trinta e sete) viram estatística na coluna de óbitos.
O Ministério da Saúde, contudo, gosta de exaltar outra coluna, a dos recuperados, foram 4.721.593 (quatro milhões, setecentos e vinte e um mil, quinhentos e noventa e três). Não poderá, ao menos por enquanto, fazer propaganda sobre quantos poderiam entrar em uma coluna ainda inexistente, aquela dos imunizados.
“Na realidade, se tivéssemos tido uma coordenação nacional séria e preventiva, não teríamos a quantidade de pessoas mortas que temos hoje no Brasil e não teríamos a quantidade de recursos empenhados em remediar a situação. Estaríamos na ação preventiva. Por isso, desenvolver ações de comunicação e de conscientização são fundamentais. É importante também que as instituições de saúde e que a Suprema Corte também opine e aja em relação a essa falta de gestão nacional da doença”, avalia a pesquisadora.