“Moro no Rita Vieira. Se quiser pegar o ônibus, preciso ir ao centro da cidade e ele demora uma hora para passar. E, se ele for para o Cristo Redentor, ele quebra. Isso há 19 anos, desde que eu era solteira, há 18 anos. Se eu quero visitar a minha mãe, que mora no Guanandi, pego o Rita Vieira-Cristo Redentor, desço no terminal e pego o 070. Desço no Terminal Bandeirantes para ir ao Guanandi. E são três ônibus. Tudo bem, pago apenas uma passagem. Saio com meus três filhos daqui às 8h30 e vou chegar na minha mãe quase 11 horas. Isso se o ônibus não atrasar, não quebrar. Dia de semana já passa de uma em uma hora e demora tudo isso, e no fim de semana. Aí é só pela misericórdia do Senhor mesmo”.
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O depoimento da dona de casa Enilce Tavares Fernandes revela o impacto na vida do cidadão quando a oferta de transporte coletivo é deficitária, o que traduz a ideia de que a mobilidade urbana é a força vital das cidades modernas. Isso acontece porque o deslocamento rápido e acessível é um fator econômico crítico de desenvolvimento.
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No caso de Enilce, a necessidade indicada é o lazer, um direito humano básico, mas o acesso ao trabalho – fator determinante para a arrecadação dos estados – é atravessado pela fragilidade no deslocamento lento e inseguro.
Na avaliação do ex-presidente da Agetran (Agência Municipal de Trânsito), Jean Saliba, quem ocupar a cadeira do executivo municipal de Campo Grande a partir de 2021 terá de priorizar o usuário. “Assim como os demais tipos e equipamentos que servem ao transporte coletivo de passageiros, este deve priorizar o atendimento ao usuário, de maneira que ele venha a cumprir seus compromissos sem prejuízo de qualquer espécie”.
No caso de Enilce, a dificuldade da mobilidade é traduzida, ainda, pela extensão da cidade e necessidade para a qual não foi encontrada resposta diante do quadro de transporte coletivo da Capital. Conforme Saliba, “embora a área urbana seja extensa, ela possui, em sua maior extensão, vias de boa trafegabilidade. Entendo que o atual sistema está obsoleto. A integração ainda utilizada como referência, data da gestão do prefeito Lúdio Coelho, há mais de 30 anos. Um novo modelo, agregando além de roteiros que utilizem novas vias, novos bairros, equipamentos que permitam o monitoramento de cada veículo, sincronizado com os painéis colocados em cada parada ou pontos de embarque e desembarque, como já funciona na maioria das cidades organizadas do Brasil e do exterior”.
Hoje, conforme dados da consultoria Mckinsey, 50% da população mundial vive nas cidades. Fica, assim, impossível não pensar em mobilidade urbana de pessoas, infraestrutura e sustentabilidade sem considerar novos modelos de negócios, preferência do consumidor e gestão inteligente de recursos humanos e urbanos. Entre as soluções imediatas para a mobilidade está o uso de aplicativos de transporte.
Foi essa a opção da própria Enilce que, para evitar as demoras, avarias e aborrecimentos dos ônibus em Campo Grande, optou pelo disponível Uber. “Ele chega em 10 minutos aqui na porta da minha casa e em mais 10 minutos eu estou na casa da minha mãe”. O conforto da agilidade assegurado à dona de casa é o sustento de, ao menos 30 mil motoristas de aplicativos, entre eles, Fernando França, 38 anos, dois deles como condutor particular e que desde o início do ano ajudou a fundar a associação da categoria.
A entidade surgiu como resposta à legislação municipal, que limitava o trabalho da categoria e, no bojo, questionava normas e qualidade de trabalho. “Eu mesmo estou há dois anos nesta atividade. Antes era mais fácil, ganhava mais. Agora, os ganhos são menores, as taxas são mais elevadas e os motoristas recebem menos. É preciso rodar o dobro para ganhar um dinheirinho mais ou menos. Pagamos taxas altas. Um autônomo tem que suportar quase R$ 400”, explica.
Há, ainda, as multas, a manutenção dos veículos e o risco de violência. Tudo na conta do motorista de aplicativo, que não pode rodar com um veículo com mais de 10 anos de fabricação – como garantia de segurança. Mesmo com os entraves, há, oficialmente, 8 mil automóveis cadastrados e é essa a frota que faz a frente não assegurada pelo transporte coletivo.
A rapidez assegurada ao usuário faz com que o ritmo urbano seja devorado pelos congestionamentos. De acordo com a plataforma Mckinsey, 50% do PIB (Produto Interno Bruto) são engolidos pelos congestionados. Ali ficam represados recursos humanos, combustível em excesso e há pressão na estrutura viária e aumento da poluição atmosférica. Assim, o ideal, sugere a consultoria, não é a garantia da mobilidade individual, que não vai ocorrer, mas a coletiva.
Esse ideal, já complicado, ficou ainda mais difícil de alcançar com a pandemia de covid-19. De acordo com dados do Consórcio Guaicurus, que assegura o transporte coletivo em Campo Grande, a frota de ônibus disponível antes da emergência sanitária era de 544 ônibus e, desses, 497 estavam em operação.
A gestão sanitária, que impõe o distanciamento físico das pessoas para evitar contaminações pelo novo coronavírus forçou a oferta para 344 carros, mesmo número no horário de pico. Em consequência, a quantidade de passageiros transportados ao mês caiu de 3.188.205 (pré-pandemia) para 1.566.672. É claro que houve queda de arrecadação e a receita contraiu 51,37%.
Quando analisa a situação das empresas do transporte coletivo de Campo Grande frente aos aplicativos, Jean Saliba aponta que um novo modelo de integração é necessário para modernizar o sistema de transporte da cidade. “O preço cobrado pela passagem, se somado durante todo o mês, daria para pagar a prestação de uma motocicleta de baixa cilindrada. Por outro lado, o Consórcio reclama que não tem lucratividade esperada. A questão das gratuidades, que de graça não tem nada, quem paga é o usuário, embutido no valor da passagem. As planilhas que compõem o preço da passagem são pouco conhecidas e as composições não permitem uma análise direta dos cálculos. Tudo isso acaba suscitando dúvida quanto ao valor da passagem. Para mudar essa realidade, no meu entendimento, seria necessário um novo planejamento de integração, usufruindo do novo plano diretor recentemente alterado e atualizado, de forma a modernizar o atual e obsoleto sistema de transporte de passageiros da Capital”.
Para esse novo sistema, enfatiza, é necessário planejamento e transparência. “Posso destacar que um novo planejamento do sistema integrado, utilizando-se da estrutura atual que não deve ser descartada, cujo objetivo seja a atualização , a modernização e a eficiência do sistema. A transparência em todas as etapas do planejamento é o que definirá o sucesso do planejamento e a execução, sem isso, no meu entendimento, será demagogia”, alerta.