Quando a noite do dia 28 de julho de 2020 começava em Campo Grande, os médicos responsáveis pela saúde do técnico em enfermagem João Paulo Da Matta já suspeitavam que a batalha travada contra o Sars-Cov-2 estava perdida. Boletins sobre o estado de saúde foram repassados para amigos muito além da Capital Morena. No lamento sobre a perda de um homem no auge da saúde, aos 38 anos e, sem nenhuma doença pré-existente, permanecem duas dúvidas. Essa morte poderia ser evitada se aos gestores brasileiros escolherem a saúde e não o caos? O assassino foi apenas o vírus ou o microorganismo não passa de um artefato bélico? Uma arma?
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A resposta brasileira à pandemia de covid-19 é comparada a uma roleta russa e é o governo quem decide o momento de acionar o gatilho. O governo federal assumiu a bandeira da economia em detrimento das pessoas, em uma cumplicidade com o Sars-Cov-2. Nas táticas de distração midiática e na aposta à imbecilização, há uma política clara e de indução à morte a granel, em que a União reúne apoio dos aliados em todas as esferas de dentro e de fora do governo.
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É impossível jogar um povo inteiro ao precipício sem ter quem opere uma boa catapulta. Isso é percebido na opção por dificultar o acesso ao recebimento do auxílio emergencial, que gerou aglomerações, na ausência de uma mensagem sobre o uso profilático de máscaras sociais e das medidas de higienização. É verdade que o Sars-Cov-2 é uma combinação inédita de desafios para a pesquisa médica e, da mesma forma que resseca os alvéolos pulmonares e provoca todo tipo de sequela no corpo humano, mina economias por onde passa.
Quando se trata de desafios, contudo, o Brasil foi campeão em subestimar a ação do vírus. Ao passar que a gripezinha só ataca “velhos” e que, somente “frouxos” usariam máscara, o governo federal criou inédita cizânia contra o povo brasileiro. A ignorância do discurso foi materializada em crime de responsabilidade, quando a União optou por simplesmente não aplicar o dinheiro previsto para combater a pandemia. É notícia velha que dos R$ 35 bilhões previstos para atuação contra a covid-19, somente R$ 8,5 bilhões chegaram ao destino. Ou seja, 24% estão aplicados e o restante o governo preferiu não gastar.
Sem recursos e sem orientação, os brasileiros assistiram a todo tipo de mensagem errônea e mal intencionada. Foram chamados pelo próprio presidente Jair Bolsonaro às ruas, onde ele compareceu em pêlo, sem máscaras. No “e daí?” ao ser provocado para comentar as mortes, o mandatário não apenas minimizou as perdas, mas reforçou a agenda negacionista que duvida da pandemia e relega ao Ministério da Saúde a estatura de elefante branco, com sucessivas trocas de ministros.
Até a atual gestão, a pasta era tida como bastião do cuidado à saúde do brasileiro, com investimento em pesquisas e em campanhas educativas. Entre os exemplos estão os trabalhos para controle das infecções por HIV e da disseminação da dengue. Ao se tratar de covid-19, porém, nem mesmo fomos induzidos a compreender o porquê da importância de lavar as mãos (tem gente que não sabe e outros nem podem). Do alto do cargo em que ocupa no governo federal, Bolsonaro virou antibrasileiro.
E, a despeito de não recomendar medidas, de não aplicar recursos, de optar pela maldade, dizia que a economia precisava funcionar. Estados e municípios apontaram para uma gestão independente da pandemia sob a chancela do STF (Supremo Tribunal Federal), mas só até certo ponto. Em quase todas as cidades brasileiras há transporte coletivo lotado e exposições à saúde que seriam impensáveis para pessoas minimamente orientadas. Por exemplo, nos ônibus que chegam à periferia campo-grandense, há quem ainda acredite ser inofensivo abaixar a máscara e comer ali mesmo, em meio a desconhecidos empilhados. Qual pessoa em posse de informações consistentes e confiáveis faria isso, sabendo-se contaminada ou não?
É natural ao comportamento humano (porque estupidez não é algo restrito ao pedaço de mundo chamado Brasil) desafiar o desconhecido, primar pelo egoísmo e ignorar a prudência. E, ao mesmo tempo, é esperada uma resposta oficial para, justamente reduzir os danos. Foi o que fizeram a China (a primeira impactada pelo coronavírus), os países europeus e alguns da América Latina, como o Paraguai. Na experiência brasileira, a opção pela negação aos riscos e danos veio de quem, justamente, deveria reforçar a proteção.
Não houve fracasso epidemiológico, o que está havendo é sucesso na condução ao caos que, até esta quarta-feira, resultou em 2.552.265 infecções e 90.134 brasileiros não voltarão para casa. João Paulo é um deles. Também é um dos oito profissionais sul-mato-grossenses da saúde que tiveram a vida abreviada, por estarem de frente para o perigo.
Se na maioria dos países que respeitam o povo e não desafiaram a pandemia, os profissionais da linha de frente (médicos, técnicos de enfermagem, trabalhadores da limpeza de hospitais) atendem ao público com EPI (Equipamento de Proteção Individual) adequado para a função, no Brasil, a maioria dos nossos trabalhadores deve “ficar contente” com uma máscara de TNT e umas luvas fininhas de borracha. A função do EPI é proteger esses profissionais da exposição a elevadas cargas virais, um dos fatores decisivos para o curso da infecção, no caso da contaminação pelo novo coronavírus. Ou seja, quanto mais vírus, mais grave será a doença.
Há meses os profissionais da linha de frente clamam por atenção. Somente a AMB (Associação Médica Brasileira) recebeu 3.886 denúncias sobre falta de EPIs adequados e 144 são referentes ao quadro de Mato Grosso do Sul. Estão em situação semelhante os demais trabalhadores, como os técnicos de enfermagem que, além de não receberem EPI correto e orientação consistente, vagam de emprego em emprego para vencer os boletos no fim do mês e comer com uma certa dignidade. Quando é contaminado, nem consegue apontar onde foi. Uma farra para quem adora ignorar uma lei trabalhista.
Pesa para muitas famílias a perda dos entes que foram sozinhos para a morte. Muitos chegaram a esse ponto enganados com terapias claramente falidas, mas cujo maniqueísmo os fez acreditar em curas milagrosas. Todo o mundo abandonou a cloroquina e a hidroxicloroquina, mas no Brasil, os estoques precisam ser desovados até para pessoas saudáveis. Bolsonaro é garoto propaganda da substância e nem comenta o fato de, até mesmo, os Estados Unidos a dispensarem para todas as etapas de tratamento da covid-19, quem dirá para quem nem a tem. Ainda assim, por conta da mensagem do presidente, há até médicos que usam e, pior, recomendam as substâncias. Alguns, mesmo conhecendo os riscos, se automedicam e fazem vídeos explicativos. Não é diferente com os demais profissionais da saúde, como os técnicos de enfermagem.
Dói de ver e está longe de acabar. “Dói”, mas a economia foi reativada, ainda que de forma precoce, ainda que as infecções sejam 15% mais elevadas que as registradas na União Europeia. Ainda que a economia brasileira esteja em marcha ré e que consumo dependa de gente viva e capitalizada.
Agora, quando a Europa se preparava para custear centros para tratar as muitas sequelas deixadas pelo Sars-Cov-2 em pacientes recuperados, surtos da covid-19 acendem a luz amarela de alerta e nem mesmo as aulas poderão ser retomadas, o Brasil ainda despeja o discurso do: “quem não morrer de covid, morre de fome”. Feio slogan que nos define.
Pelos contornos deste enredo, a pergunta que permanece é: quantos mortos serão necessários para fechar a conta? A resposta: serão muitos e, talvez, nem cheguem. Não podemos mais permanecer na tristeza, no lamento. Como nos assassinatos premeditados ou não, a justiça será feita? Passou da hora de apontar os responsáveis e eles não estão apenas no governo, daquele com o dedo no gatilho da arma novo coronavírus, modelo Sars-Cov-2.