A Câmara Municipal de Campo Grande reuniu diversas representantes da sociedade civil, de instituições e do poder público para debater a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência nesta segunda-feira (24). Entre as participantes, esteve a mãe da jornalista Vanessa Ricarte, Maria Magdalena Ricarte, que falou sobre o feminicídio da filha, ocorrido no dia 12 de fevereiro.
Maria protestou contra o inquérito da Corregedoria da Polícia Civil, que não encontrou erros das delegadas no cumprimento de protocolos no atendimento da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), na Casa da Mulher Brasileira. Após ser assassinada pelo ex-noivo, o músico Caio Nascimento Pereira, áudios de Vanessa com relato sobre como foi atendida vieram a público e evidenciaram que a vítima não foi acolhida e acabou perdendo a vida horas depois, ao voltar para casa sem proteção, onde estava o feminicida.
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“Os áudios mostram como ela ficou decepcionada com o atendimento. Houve falha sim. A Lei Maria da Penha garante à mulher atendimento contínuo e escolta policial. Se tivessem feito a escolta como determina a lei, ela não teria morrido esfaqueada”, desabafou Maria Magdalena Ricarte durante a audiência pública.
“Cadê o conhecimento da delegada em não convencer a vítima a voltar para a casa? Por que Vanessa não conseguiu alterar o boletim de ocorrência?”, questionou a mãe de Vanessa. Ela reclama que a filha não conseguiu acolhimento e proteção. “A Casa da Mulher Brasileira é tão grande, imponente, mas ineficaz”.
Maria pediu a exoneração da delegada que atendeu a jornalista. O pai de Vanessa, Agmar Ricarte, solicitou que as delegadas peçam às vítimas para avisarem os familiares da violência que estão sofrendo.
A delegada Elaine Benicasa, titular da Deam, garantiu que “os inquéritos administrativos ou criminais foram apurados de forma pormenorizada, juntado provas documentais e testemunhais”, com a investigação apurada nos mínimos detalhes. Ela citou o trabalho da Polícia Civil para indiciar o músico Caio Nascimento pelo feminicídio de Vanessa, incluindo na denúncia a violência doméstica e o cárcere privado.
No debate, a delegada opinou que o momento é aprimorar toda a rede, mas que é necessário “olhar para trás e ver o quanto já foi feito, quantas vidas foram salvas”. A policial citou que somente no ano passado oito mil boletins de ocorrência foram registrados. “É preciso ainda olhar para o presente para nos abrirmos a eventuais dificuldades, déficits e problemas que precisam ser enfrentados”, afirmou.
A secretária-executiva da Mulher de Campo Grande, Angélica Fontanari, relatou que “precisa trabalhar a educação das crianças, nas escolas e dentro das nossas casas, para que meninos e meninas cresçam sem violência”.
Fontanari apontou a necessidade de debater a rede, achar caminhos e resolutividade para evitar erros. “Precisamos que uma instituição cuide da outra para evitar esses erros”. Ela falou ainda do Dossiê Mulher, publicado neste mês, com um mapeamento da cidade para identificar bairros com maiores índices de violência doméstica, onde as políticas públicas voltadas às mulheres devem ser priorizadas.
A subsecretária de Políticas Públicas para Mulheres de Mato Grosso do Sul, Manuela Nicodemos, elencou série de desafios e reformulações propostas para aperfeiçoar a rede de atendimento às mulheres em situação de violência. A ampliação da representatividade no Comitê Gestor da Casa da Mulher Brasileira foi um dos pontos destacados.
“Precisamos de representatividade da sociedade civil e também de familiares de vítimas de violência doméstica / feminicídio”, declarou Manuela. A subsecretária comentou ainda sobre a Câmara Técnica para acompanhar a política de enfrentamento em Mato Grosso do Sul, ampliar a assistência à violência psicológica, ainda subnotificada, além de rediscutir a política de abrigamento das mulheres.
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“Falar sobre a violência contra a mulher, falar de políticas para as mulheres, não é uma política de gênero. É uma política para toda a sociedade, porque nós somos a maioria da sociedade. Nós estamos aqui hoje porque o sistema falhou. Esse sistema falha todos os dias. Não ter resposta da prefeita de Campo Grande, enquanto o governo atendeu. Salvou a vida da minha avó”, declarou a ex-candidata a prefeita de Campo Grande.
“Somos a maioria da sociedade. Estamos falando de uma sociedade que ainda nos mata pelo simples fato de sermos mulheres. O sistema ainda falha em nos proteger. Somos violentadas pela nossa própria existência. O sistema falhou com uma mulher que tinha conhecimento da rede e esse sistema falha todos os dias”, prosseguiu a deputada.
A defensora pública Zeliana Luzia Delarissa Sabala, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, relatou que a Defensoria Pública trabalha por provocação, precisando representar uma das partes. “O Núcleo atende todas as mulheres em situação de violência. Atendo a mulher vítima de lesão, vítima de ameaça, a que busca ação de divórcio, também atendo as famílias das vítimas para que a dignidade dessa vítima seja preservada”, afirmou.
Recém instalada, a 4ª Vara de Violência Doméstica já tem recebido 20 pedidos de medida protetiva por dia, conforme a juíza Tatiana Said. A magistrada citou que o objetivo seria zerar os casos de violência, mas ressaltou a preocupação com a subnotificação e, portanto, enfatizou a necessidade de prevenção. A atualização do sistema com as medidas protetivas e a intimação de forma eletrônica são alguns das medidas citadas para dar celeridade. Ela ressaltou ainda acordo de cooperação para garantir a capacitação de 42 policiais para integrar equipe que cumpre mandados de violência doméstica.
O atendimento na Casa da Mulher Brasileira foi explicado por Iacita Azamor, gerente do local. Ela explicou que a mulher faz um cadastro rápido na recepção, é encaminhada ao atendimento psicossocial, faz oitiva especializada e relatório de risco. “Lá ela abre o coração, conta história dela porque se sente acolhida. É ouvida por psicóloga e assistente social, a portas fechadas”. A partir daí, essa mulher é encaminhada para registro do boletim de ocorrência, podendo pedir medidas protetivas.
Os dados alarmantes de violência contra mulheres foram destacados por Vanessa Silva, do Conselho de Psicologia . “É um reflexo da ausência de política coordenada. Precisa preparar quem vai ofertar essa política às mulheres. Estamos aqui para recuperar esse atendimento”, afirmou. Ela citou a necessidade de rede que ampare a mulher desde o mercado de trabalho, o empoderamento, ou quando ela chega fragilizada na delegacia.
A professora Estela Márcia Rondina Scandola, pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul, falou da importância de todo atendimento ser integrado e contemplar todas as mulheres.
“Historicamente, fala-se mais se o violador foi preso. Talvez, seja hora de ir em busca das mulheres atendidas e ver o que aconteceu. A qualidade do atendimento é determinante no que vai acontecer na vida dessas mulheres depois”, disse. Ela ressalta a necessidade de encaminhamento ao SUS (Sistema Único de Saúde) nos casos de violência psicológica.