Esta quinta-feira, 13 de fevereiro, amanheceu com a trágica notícia da morte da jornalista Vanessa Ricarte, 42 anos, assassinada a facadas pelo ex-noivo. Ela é a segunda mulher vítima de feminicídio em Mato Grosso do Sul neste ano e a primeira em Campo Grande.
A tentativa de assassinato da colega, que lamentavelmente acabou consumado, na tarde de quarta-feira (12), aconteceu horas depois da cobertura de O Jacaré sobre os ataques de políticos, em plena Assembleia Legislativa, a uma professora trans por ter usado uma fantasia para recepcionar alunos no início do ano letivo em uma escola da Capital.
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A associação entre os casos é inevitável, tendo em vista que o Brasil é um dos líderes em feminicídio no mundo e o país que mais mata pessoas trans. E, no mesmo dia, dois casos que evidenciam esses absurdos.
Obviamente, os que atacaram a professora Emy Mateus Santos, 25 anos, dizem que não houve preconceito ou discriminação em suas hostilidades. Mas aí segue o questionamento.
Você já viu alguma polêmica derivada de uma professora fantasiada receber os alunos no primeiro dia de aula? Pois é, porque algo corriqueiro não deveria virar notícia. Existe até nomenclatura para o que a educadora fez, o “ensino lúdico”, metodologia de ensino que usa brincadeiras, jogos, músicas, danças e outras atividades criativas para ensinar.
Um dos detratores, inclusive, criticou a “artista” por se apresentar aos alunos, sendo que a professora leciona exatamente Artes Cênicas, Teatro e Dança.
Daí vem mais um ponto que liga os casos, a hipocrisia. Vanessa Ricarte foi assassinada pelo músico Caio Nascimento Pereira, 35 anos. O feminicida tem uma longa ficha de violência contra mulheres. Ele foi preso e levado para a Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) após o crime.
O Campo Grande News encontrou, no TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), seis pedidos de medida protetiva de ex-companheiras de Caio, na Vara da Violência Doméstica e Familiar. O Midiamax informa que o músico acumulava 11 registros de boletins de ocorrência por violência doméstica.
Apesar dessa ficha policial, Caio Nascimento Pereira exalta ser ‘homem de Deus’. “O agir de Deus é lindo! Cantaremos a bondade de Deus”, disse em uma postagem. “Deus é bom o tempo todo! Propósitos, sonhos, missão”, celebra em outra.
Os parlamentares que atacaram a professora Emy Mateus Santos também se dizem cristãos, mas um deles aproveitou a tribuna da Casa de Leis estadual para atacar outro ser humano. Difícil de imaginar que Jesus Cristo apoiaria algo do tipo ou que entre seus ensinamentos há incentivos para esse tipo de atitude. Quem olhar de fora pode pensar que Mato Grosso do Sul e Campo Grande não têm problemas mais urgentes.
Para ilustrar como o assassinato de mulheres é uma praga no Estado, utilizo uma declaração da deputada federal Camila Jara (PT) ao informar sobre o primeiro caso de 2025. “No 1º feminicídio do ano em MS, mais uma mulher foi silenciada pela violência que já deveria ter sido combatida com urgência!”, publicou em 4 de fevereiro.
O anúncio do “1º feminicídio do ano em MS” torna essa marca como um evento canônico que fatalmente acontece todo ano no Estado, ou seja, após as celebrações da passagem de dezembro para janeiro, é questão de tempo para que uma sul-mato-grossense perca a vida para um cônjuge ou ex-companheiro.
As instituições de segurança têm agido para diminuir o assassinato de mulheres no País e no Estado, ao mesmo tempo em que é óbvio e cristalino que algo mais enérgico precisa ser feito para pôr fim aos casos de feminicídio. Entretanto, é difícil de imaginar mudanças drásticas quando parlamentares preferem atacar pessoas nas Casas de Leis, em vez de tratarem de problemas reais da nossa sociedade.
Os números
Pesquisas divulgadas em 2021 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos posicionam o Brasil no 5º lugar no ranking mundial de feminicídio. Em 2024, houve redução de 5,1% dos casos registrados em relação a 2023, no País.
De acordo com os dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), até outubro do ano passado, os estados e o Distrito Federal comunicaram ao Ministério da Justiça e Segurança Pública 1.128 mortes por feminicídio.
Em Mato Grosso do Sul, segundo o Monitor da Violência Contra a Mulher, abastecido com dados da Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública, foram registrados 87 tentativas e 35 feminicídios em 2024.
A primeira vítima de feminicídio em 2025 foi Karina Corin, 29 anos, após ser baleada pelo ex-companheiro na cidade de Caarapó. Ela morreu em 4 de fevereiro no Hospital da Vida de Dourados. Amiga de Karina, Aline Rodrigues, 32 anos, que estava com a colega em uma loja no momento do crime, também perdeu a vida após ser atingida pelos disparos.
Com 105 mortes em 2024, Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Apesar de ter registrado 14 casos a menos que em 2023, o país segue, pelo 17º ano consecutivo, como o que mais mata pessoas trans no mundo. Os dados são do Dossiê: Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira, da Rede Trans Brasil.
A maioria das mortes registradas no Brasil é de mulheres trans ou travestis, que correspondem a 93,3% das vítimas. As demais vítimas, 6,7% são homens trans. A maior parte tinha idade entre 26 e 35 anos (36,8%), era parda (36,5%) ou preta (26%) e era trabalhadora sexual.