Enquanto o castigo do fogo permanece no Pantanal sul-mato-grossense, um país do outro lado do Atlântico olha com a pena de quem conhece a devastação causada pelos incêndios florestais à natureza e à sociedade, ainda que de origem e extensão diferentes. Não faz muito, seis anos exatamente, Portugal “ardeu” em chamas, vitimando 114 pessoas, além de pouco mais de uma centena de animais selvagens das mais diversas espécies de animais e mudando a maneira como a república lusitana passou de agente de resposta para de prevenção aos incêndios florestais.
O verbo “arder”, utilizado pelo povo português para traduzir a ação dos incêndios, não teria melhor opção para ajudar a compreender as ocorrências, em especial na cidade de Pedrogão Grande, em 17 de junho 2017, quando 47 pessoas foram consumidas pelo fogo enquanto tentavam fugir de automóvel pela estrada 235-1.
Sobre aqueles que ficaram na pista, coube a olhos impotentes guardar as histórias das tentativas de fuga diante das chamas e que resultaram apenas em corpos espalhados sobre o betume queimado. Ajustados ao significado de “arder”, os incêndios deixaram os 3.390 habitantes daquela cidade, localizada a 196,6 quilômetros da capital Lisboa, atormentados e desagradavelmente acres (palavra sinônimo de amargo e corrosivo).
Emoldurada por árvores, a via foi transformada em um verdadeiro túnel de fogo em uma área contígua abrangida por 11 concelhos (cidades) e que resultou, somente como consequência daquele dia, em 66 mortos e 254 feridos.
Outros 48 morreriam nos quatro meses seguintes devido ao agravamento de ferimentos ou à inalação de fumaça. De acordo com a agência Lusa, somaram-se às perdas de vida, o prejuízo material de 500 casas destruídas total ou parcialmente pelo fogo, além de 372 postos de trabalho fechados em 48 empresas da região, perfazendo quebra na ordem de 500 milhões de euros (R$ 3,3 bilhões).
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Incêndios florestais atingem a Península Ibérica todos os anos
Já em 2018, o governo português havia sido condenado ao pagamento de 31 milhões de euros (R$ 187 milhões) em indenizações às famílias dos mortos. A Assembleia da República chegou a aprovar por unanimidade, em 7 de julho de 2019, a resolução que consagrou 17 de julho como o Dia Nacional em Memória das Vítimas dos Incêndios Florestais.
Em paralelo, a pressão popular, política e acadêmica estava além do dinheiro ou de homenagens, isso porque a memória deveria ser usada para ajudar a compreender o porquê daquele acontecimento e a forma de evitar semelhantes no futuro.
Todos os anos acontecem incêndios em Portugal, de acordo com a Organização Não-Governamental WWF. As ocorrências, aponta a ONG, estão localizadas na parte nordeste da Península Ibérica, onde também estão o norte e centro de Portugal, na Galiza, nas Astúrias, Cantábria e a norte de Castela e Leão, na Espanha.
Além de questões sociais, da prática da queima controlada (e descontrolada), a região apresenta invernos temperados abundantes em chuva, decisivos para o crescimento rápido da vegetação e aumento da disponibilidade de combustível. Ainda segundo o WWF, essa porção de terra vive verões quentes, sem humidade, e coincidindo com uma faixa atlântica de vento quente e seco.
Foi assim e mais um pouco em 2017, segundo o relatório da Comissão Independente contratada para dar respostas à situação originada pelo fogo, uma soma de fatores concorreu para a tragédia. O documento aponta que foram raios e descargas elétricas os responsáveis por dar início ao fogo e, mesmo que fosse primavera, a vegetação estava mais seca que na comparação dos anos anteriores.
Houve ainda particular ocorrência de mais raios lançados na atmosfera e, até o vento contribuiu para espalhar as chamas de maneira excepcional. As mudanças nas colunas de ar quente pioraram a situação e, em menos de 1 hora, 4.459 hectares foram consumidos pelo fogo, como afirmou o Corpo de Bombeiros.
Gestão pública ineficiente favoreceu severidade dos incêndios
Os dados do relatório contrariam a tese, espalhada principalmente pela imprensa, de que os incêndios eram apenas criminosos, uma decisão pessoal de vândalos ou mal educados. Revelaram, ainda, que não foi por falta de conhecimento de situações excepcionais que a cidades atingidas pelo incêndio sofreram, mas por abandono da gestão pública florestal.
Extensas faixas de terra sem qualquer manutenção em anos cada vez mais quentes estavam à mercê da combinação desprezo público/privado e clima. A partir dos eventos de 2017, o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais recebeu mais investimentos e passou a atuar na capacitação de risco, aperfeiçoamento da legislação, no monitoramento de risco de áreas e da população vulnerável.
Somente em 2020, foi aprovado o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fotos Rurais, destinado a gerir o risco de incêndios. A prioridade na maneira como os incêndios deveriam ser combatidos, contudo, data de três anos antes. Em 2017, dos 140 milhões de euros investidos no combate a incêndios, 80% eram destinados ao combate e 20% à prevenção.
A partir de 2018, a resposta começou a mudar e, dos 230 milhões de euros destinados aos incêndios, 65% estavam comprometidos com o combate e 35% com a prevenção. Combate e prevenção tiveram aportes de 50% cada do montante de 250 milhões de euros despendidos em 2019. Já em 2023, foram empregados 54% dos 483 milhões de euros na prevenção.
Mais dinheiro para prevenir que para combater eliminou mortes humanas
Como resultado do investimento, nenhuma morte foi registrada como saldo de incêndios florestais em 2023, pela primeira vez desde o início dos trabalhos. Nos cinco anos anteriores, houve queda gradual da quantidade de vítimas fatais (13 em 2018; dez em 2019 e quatro em 2022). Houve, ainda, redução de 61% na área atingida, passando de 442.418 hectares em 2017, para 34.503 hectares em 2023.
A lógica de antever os incêndios e não remediá-los em toda a Península Ibérica só ganhou corpo a partir da pressão, também, dos estados-membros da União Europeia, que aprovou em 27 de fevereiro de 2024, a Lei do Restauro, com um cronograma de recuperação dos ecossistemas degradados em que não estava previsto apenas plantar árvores.
Com a legislação, os países comprometeram-se em reduzir a vulnerabilidade do território incluindo 1% do fundo destinado ao combate a incêndios em planejamento, 45% na prevenção, 34% no combate e 20% na recuperação.