Terça-feira (6) e quarta-feira (7), médicos de todo o País votarão para eleger os novos conselheiros federais do CFM (Conselho Federal de Medicina) que permanecerão por cinco anos no cargo. No total, são 54 vagas de titular e suplentes de todos os estados. Para este ano, segundo o CFM, 514 mil eleitores estão aptos a votar e, destes, 6.955 estão registrados em Mato Grosso do Sul que, pela primeira vez, conta com três chapas na disputa.
Os conselheiros que vencerão a corrida eleitoral vão escolher em votação secreta o futuro presidente do CFM e os respectivos diretores. Da mesma maneira que os conselheiros, a diretoria também permanece no poder por cinco anos, e a corrida deste ano para chegar aos cargos decisórios do órgão tem refletido o cenário político nacional.
Durante a campanha, por exemplo, os eleitores têm sido bombardeados com peças publicitárias nas redes sociais que alinham a eleição do CFM à necessidade de “tirar o PT do poder”. Entre os exemplos, está uma publicação distribuída nacionalmente com as afirmações de haver a necessidade de o CFM ser “contra o PT. Contra o Mais Médicos. Contra a abertura de mais escolas de Medicina. Contra a invasão do ato médico e a favor da vida. O PT está unido para botar (sic) os esquerdistas no controle da Medicina Brasileira”.
Mato Grosso do Sul também é reflexo do cenário nacional, em um pleito marcado por acusações de cunho ideológico. No mesmo panfleto citado, cujo título é “Não vai dar PT na Medicina”, são apontadas as 18 chapas de “direita” que seriam “garantidamente contra o PT e o Mais Médicos” e, entre elas está a encabeçada por Mauro Luiz Britto Ribeiro, e que esteve envolvido em um rosário de polêmicas, como a defesa para a prescrição do tratamento precoce e da ivermectina para combater a covid-19, ainda que fossem comprovadamente ineficazes contra a doença.
Ao O Jacaré, Mauro Britto afirmou que ele e o suplente Flávio Freitas Barbosa decidiram ingressar na disputa na sequência de cinco anos como integrantes da gestão do CFM. “A principal motivação foi a percepção de que o momento atual da medicina brasileira exige uma representação forte e comprometida. Estamos decididos a lutar pela autonomia dos médicos, pela defesa da vida, pela qualidade do atendimento, pela boa formação e pela integridade do sistema de saúde. Nossa chapa busca não apenas enfrentar os desafios, mas também promover mudanças significativas e duradouras para a medicina no Brasil”.
Na avaliação de Mauro Britto “o debate no Conselho é fundamental para promover uma maior integração entre as entidades médicas e para criar propostas que visem melhorias reais no sistema de saúde”. O médico defende que a colaboração e o diálogo possibilitam “identificar problemas, desenvolver soluções e implementar políticas que elevem a qualidade da saúde pública, garantam melhores condições de trabalho para os médicos e ofereçam um atendimento mais eficiente e acessível para toda a população”.
Candidato nega partidarização da atual gestão do CFM
Em paralelo à defesa da integração e do debate, o médico afirma haver um cenário de crescente crítica e desinformação sobre o CFM, posto como vítima de um “discurso esquerdista”. “Os principais desafios que enfrentamos hoje como representantes do CFM incluem a necessidade de reafirmar a legitimidade e a importância do Conselho em um cenário de crescente crítica e desinformação. Estamos vendo claramente uma tentativa de desconstrução da nossa profissão e a redução do espaço legítimo do CFM. Há um discurso da esquerda de que o Conselho Federal de Medicina foi tomado por uma partidarização. Esta visão distorce a realidade e ignora o papel fundamental que o CFM tem desempenhado ao longo de suas sete décadas de existência”.
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Também na disputa, o psiquiatra Juberty Antônio de Souza explicou ser contrário a manifestações políticas dentro do CFM. Ele defende que o alinhamento com o suplente Luiz Alberto Lopes Verardo resulta da busca por um papel efetivo da entidade sem o envolvimento com movimentos ou partidos políticos.
“Estamos confiantes porque a nossa chapa é apartidária. Nosso partido é Medicina, a população e o médico. Achamos que o CFM não deve ter partido, deve ser apartidário. Essa é uma das coisas que defendemos e pretendemos contribuir com a nossa experiência, porque estamos há 10 anos no CRM (Conselho Regional de Medicina), conhecemos a vida dos médicos na Capital (Campo Grande) e no interior de Mato Grosso do Sul e isso nos coloca em posição de contribuir com o conselho federal”.
Para candidata, CFM erra ao abandonar o Conselho Nacional de Saúde
A única candidata mulher a representar Mato Grosso do Sul, a infectologista Silvia Naomi de Oliveira Uehara, entrou na disputa por uma das vagas de conselheira, tendo o médico reumatologista Izaias Pereira da Costa como suplente, sob a motivação de renovar e aumentar a participação feminina na entidade classista.
“O doutor Izaias Pereira da Costa é a história viva da luta pela Ciência e pela Reforma Sanitária neste Estado e, com humildade, propôs e compôs como suplente, defendendo a renovação do CFM, com maior participação das mulheres, por isso entrei como titular”.
Silvia teceu críticas à maneira como a atual gestão do CFM age e se pronuncia sobre a política. “A saída da representação do CFM do Conselho Nacional de Saúde, em 2009 , sob a alegação de ‘discordância com relação ao processo eleitoral proposto, que vincula a representação de seus membros a negociações e acordos políticos’ é contraditória às propostas de chapas da situação que propõe atualmente ‘relacionamento com políticos’ para defender pautas médicas. E a expectativa de que a saída fosse transitória, não se confirmou e persiste até hoje, após três eleições em que grande parte dos representantes se manteve no CFM, muitos desde 2009”.
Silvia Naomi pondera que o posicionamento culminou pela precarização e descrença da classe médica. “A falta de participação em instâncias de controle social, que zelam pela formação acadêmica e que definem a habilitação e credenciamento de Escolas e Hospitais-Escola, a irregularidade de presença nas reuniões da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), a falta de adesão a protocolos internacionalmente aceitos com base em critérios científicos e dados epidemiológicos robustos, a pouca fiscalização das condições de trabalho in loco, trouxeram progressiva precarização e descrença na classe médica brasileira, que muitas vezes é questionada sobre a sua desvinculação da elaboração das políticas nacionais e mundiais de saúde”.
Candidato critica financiamento precário do SUS
A médica defende a retomada das representações do CFM no Conselho Nacional de Saúde, na Mesa Nacional de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), e dos Grupos de Desprecarização de Trabalho no SUS como forma de fortalecer a oferta pública de saúde. Mauro Britto, contudo, coloca a entidade no papel de fiscalizadora da eficiência do SUS.
“Desde a consagração do SUS na Constituição Federal em 1988, o CFM tem sido um defensor incansável de melhorias e investimentos no sistema. Acreditamos ser fundamental garantir que as políticas públicas assegurem acesso igualitário e de qualidade aos cuidados de saúde para toda a população. Durante minha gestão como presidente do CFM, de outubro de 2019 até abril de 2022, fomos firmes em denunciar o abandono do SUS e exigimos medidas concretas para sua revitalização. Continuaremos lutando por investimentos adequados e melhorias contínuas no sistema de saúde para atender às necessidades de todos os brasileiros, além de promover a valorização da carreira médica dentro do SUS”.
Sobre o SUS, o psiquiatra Juberty afirma que o sistema é merecedor de elogios, mas enfrenta problemas de financiamento que terminam por impactar na carreira médica. “É preciso fortalecer o SUS, que tem uma filosofia linda, mas enfrenta problemas com financiamento, na execução e na descentralização. Da maneira como está colocado, sem modernização, há dificuldade até para a prática médica e, por isso, estamos atuando pela implantação da carreira médica no SUS. Já não é mais possível praticar medicina com um estetoscópio e um aparelho de pressão. Foi-se o tempo, isso não é mais suficiente. Não há condições de trabalho para os médicos no interior e eles precisam estudar, estarem preparados para estas especificidades”.
Mais Médicos mudou, mas ainda há desinformação e reserva de mercado
Na busca por votos nas eleições desta semana, Juberty endossa que a carreira médica sofre, para além das questões de financiamento do SUS, da necessidade de adequação à atração de profissionais, ao citar o caso específico do Mais Médicos. “Esse programa carece de adaptações. Temos aqui uma plataforma mínima de habilidades e ela precisa ser demonstrada, o que não vem ocorrendo. Para qualquer coisa que seja feita, é preciso haver um tempo de adequação para nos adaptarmos. Quando esses profissionais chegam, não têm condições de atuar mesmo nas mais simples tarefas sem algum tipo de supervisão”.
O psiquiatra toca entre um dos pontos de maior debate da campanha e que tem na chapa liderada por Mauro Britto contrariedade total. “Acreditamos que soluções temporárias, como o Programa Mais Médicos, não abordam adequadamente os problemas estruturais do SUS. Em vez de medidas eleitoreiras, defendemos a implementação de um projeto permanente que valorize e ofereça condições de trabalho adequadas para a carreira médica. É essencial criar um ambiente de trabalho estável e de longo prazo que responda às necessidades reais do sistema de saúde. Além disso, um dos compromissos da nossa chapa é continuarmos a lutar politicamente e judicialmente para garantir que o exame Revalida seja a única forma de revalidação de diplomas médicos, assegurando a qualidade e a uniformidade na formação dos profissionais”, dispara Britto.
Na avaliação da infectologista Silvia Uehara, o CFM precisa atualizar a visão sobre o Mais Médicos como forma de contribuir para o preenchimento da lacuna de profissionais no País. “O PMMB (Programa Mais Médicos para o Brasil) mudou muito desde sua criação, tendo eixo de provisão profissional com prioridade para pessoas formadas no Brasil, seguido de brasileiros formados no exterior e, depois, por profissionais estrangeiros formados no exterior”. A candidata detalha, ainda, que hoje, o eixo de provisão tem mais de 60% de profissionais brasileiros com CRM por formação no Brasil ou com CRM por revalidação”. Além disso, afirma que só é possível prorrogar o tempo de bolsa para oito anos se o profissional formado no exterior revalidar o diploma em até quatro anos de participação no PMMB. Hoje, completa, “menos de 10% dos profissionais são estrangeiros. Todos os profissionais são acompanhados por Supervisores Médicos selecionados por instituições de Ensino Superior Brasileiras reconhecidas”.
Além da oferta de profissionais, a formação também está entre os pontos polêmicos. Segundo Silvia Uehara, o olhar dos conselheiros já deveria estar direcionado ao trabalho com o ensino médico como maneira de fazer frente às múltiplas realidades do território brasileiro. A infectologista também defende atenção ao processo de avaliação das escolas médicas em funcionamento.
“Isso deve ocorrer para que não se restrinja à avaliação punitiva e impeditiva de exercício profissional do recém-formado. Defendemos a proposta de trabalho conjunto com o Ministério da Educação, para avaliação formativa, que inclua a avaliação da Escola Médica (infraestrutura de laboratórios e do hospital-escola ao qual seja vinculada, parque tecnológico e de equipamentos, qualificação do corpo docente), além de avaliação seriada do aluno, que permite mudança de rumo e possibilidade de melhora na formação acadêmica ao longo da graduação”.
Candidatos discordam sobre avaliação de novos médicos
Em contrapartida, Mauro Britto encabeça a ala da classe médica que defende rigor na avaliação. A formação também está entre os pontos do debate eleitoral que mais expõe a questão político-partidária do pleito.
“Os governos de esquerda foram responsáveis pela abertura de pelo menos 70% das escolas médicas no Brasil, o que resultou em um aumento significativo no número de formandos, muitos dos quais não conseguem adentrar na Residência Médica. Esse é um desafio que enfrentamos no CFM. Acreditamos que a autarquia deve desempenhar um papel mais ativo na avaliação sistemática das escolas médicas, assegurando que essas instituições atendam a padrões elevados e preparem adequadamente os futuros médicos para os desafios da profissão. São 44 mil novos médicos por ano. Defendemos uma avaliação rigorosa dos cursos existentes e a redução do número de vagas em instituições que não atendem aos critérios estabelecidos. Além disso, apoiamos a implementação de um exame de proficiência para os estudantes de Medicina, essencial para a obtenção do CRM.
Silvia Uehara discorda. Para ela, o exame não vai resolver a questão e, ao contrário, criar demandas distantes da melhoria da qualidade do ensino. “A implantação exclusiva de exame de ordem após o fim da graduação não muda a qualidade profissional, nem das escolas médicas; não impede a abertura indiscriminada de novos cursos, ela cria castas de profissionais e um mercado de “cursinhos preparatórios”, sem conversão em qualidade de atenção à saúde”.
Já o psiquiatra Juberty defende opinião no sentido oposto dos dois adversários. Para ele, é preciso preencher a lacuna do ensino e buscar melhorias internas, considerando haver faculdades precárias e sem a possibilidade de oferecer condições mínimas, como um hospital. “Vamos trabalhar para, ao menos, conseguir um currículo único e que seja flexível para as regiões brasileiras conforme as suas realidades. Isso acontece porque cada região tem sua epidemiologia e atua de maneira diferente com a doença, mas é preciso flexibilizar para dar segurança ao profissional e à população”.
No pleito deste ano, as questões de gênero também estão no centro do debate, como detalha Juberty. O psiquiatra pondera a necessidade de maior atenção às mulheres para corrigir lacunas culturais e de fundo trabalhista. “As mulheres são penalizadas em diversos aspectos, sobretudo os culturais. Na própria carreira médica, elas já superam em 50% os homens e, nem mesmo assim têm garantia de direitos. Precisamos ter um olhar diferente para a mulher médica, porque a mulher conquistou seu lugar na sociedade, são em número maior e, ainda assim, permanece penalizada. Vamos propor nas comissões a flexibilização de regime e horários diferenciados como forma de valorizar as mulheres que escolheram a carreira médica”.
A questão das mulheres pode contribuir para alterar a composição do CFM, como espera Silvia Uehara. “Já percebemos que houve mudança de postura dos eleitores, que passaram a questionar os candidatos sobre posições polêmicas como a defesa do aborto para mulheres e meninas que passaram por violência ou cuja sobrevivência seja ameaçada em decorrência de complicações na gravidez. Ousou-se propor a criminalização da mulher, em uma profissão em que mais de 50% dos profissionais são mulheres, desconsiderando-se os próprios levantamentos da Demografia Médica publicada pelo CFM no ano de 2023 e as recomendações internacionalmente respaldadas por sociedades de especialidade, de Bioética e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a segurança física e mental das mulheres e meninas”.
De fato, a participação dos eleitores na disputa pelas cadeiras do CFM está evoluindo. De acordo com dados do site da entidade, 417 mil médicos votaram nas eleições para os conselhos regionais em 2023. O montante de eleitores corresponde a 77,6% do total de médicos inscritos e supera em 53% a participação no pleito de 2018.
Ainda que haja maior participação, Silvia Uehara defende a revisão das normas eleitorais da entidade. “Isso ocorre porque as normas atuais privilegiam candidatos da situação, que continuam exercendo o mandato enquanto concorrem à reeleição, com exceções à norma, permitindo participação em eventos do CFM e que não veda o uso de simbologia da Instituição em impressos ou mídias sociais, dando a impressão de tratar-se de concordância do CFM com a posição de uma ou outra chapa, ainda que única. Aos demais, essa prática é vedada”, critica.