Campo Grande quantificou 743denúncias de estupro no ano passado, de acordo com dados do Boletim Observatório da Mulher. Os números divulgados representam somente as vítimas que procuraram a polícia para denunciar a violência sofrida, a maioria, 82% era do sexo feminino. Muitas pessoas, contudo, não chegam a aparecer nas estatísticas por motivos diversos que lhe impedem o acesso, entre eles está a vergonha. Driblar o constrangimento nunca é uma decisão fácil, em especial quando há os fatores poder e dinheiro em favor do violador.
No último mês, Brasil, Espanha e Itália abordaram as relações de poder em favor de dois desportistas, ambos condenados por estupro, os jogadores de futebol Robinho e Daniel Alves. Enquanto Robinho ingressou no sistema penitenciário brasileiro para cumprir pena pela violação de uma mulher albanesa na Itália, Daniel Alves conseguiu a liberdade após pagar fiança pelo estupro de outra vítima, na Espanha.
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Na avaliação da professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Lucimar Dias Rosa, apesar dos casos, tem havido avanços no tratamento desse tipo de crime, mesmo quando os acusados são pessoas com dinheiro e poder. “Esses casos não são incomuns no contexto masculino do patriarcado. Cotidianamente, temos um alto índice de vítimas de estupros. Acredito que temos avançado como sociedade. Existe um consenso que vai sendo construído e que essas situações não são inaceitáveis”.
A professora Lucimar Rosa, cujo percurso acadêmico foi iniciado na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), aponta uma mudança comportamental da sociedade em favor das mulheres. “Essas pessoas precisam ser punidas. Eu vejo com muito otimismo essa situação que estão chegando nas mídias e ganhando o corpo. Isso vai mostrando para a sociedade de modo geral, e para os homens em particular, que é preciso refazer seus conceitos, seus valores e estabelecer uma outra relação com as mulheres”. Para ela, o movimento das vítimas em driblar os constrangimentos e denunciar os casos também é um reflexo sobre a maneira como as mulheres olham para si, deixando de arcar com uma culpa que não é delas. “Muitas mulheres se sentiam culpadas por muito tempo, por medo de serem punidas socialmente”.
Paralela à necessidade das vítimas de denunciar, também há o impacto do lado dos homens, defende Lucimar. “A gente percebe que existe apoio maior de homens. Ouvi muitos homens se manifestando (sobre o caso dos jogadores). O Emicida, por exemplo, que é uma voz importante no Brasil, se manifestou em relação ao Robinho, dizendo que já foi o herói dele. Naquele momento, contudo, estava estabelecida uma ruptura. Isso é muito importante, porque apoia as mulheres e as estimula a denunciar esse tipo de situação. Elas passam a compreender que não estão sozinhas. Eu sempre acho muito corajoso para as mulheres conseguir fazer esse movimento de denúncia, de entrar na Justiça, porque são processos muito desgastantes para elas, mas elas também compreendem que é algo importante não só para elas, mas para a sociedade”.
Percurso após denúncia assusta vítimas e familiares
Da denúncia à condenação, quando provado crime, o caminho é longo, ressalta Lucimar. “Eu as admiro porque sempre existe um desgaste emocional e um descaso social também. Elas enfrentam isso compreendendo que é importante, que isso é o que vai conseguir evitar novas vítimas desses próprios sujeitos e, ainda, para que outros aprendam. Quando outros percebem que isso não ficará impune e que a sociedade está cada vez menos tolerante com esse tipo de atitude”.
Mesmo com mudanças e melhorias, a garantia de proteção às vítimas é uma estrada longa. “Nós estamos vendo esses casos exemplares de punição, mas recentemente, no Brasil, tivemos um homem considerado inocente por ter feito sexo com uma menina de 12 anos. A lei aponta que é estupro. Acredito que a Justiça ainda está enviesada, responde a casos emblemáticos, mas é importante lembrar que esse dois (dos jogadores) foram julgados em outros países. E como fica o Brasil nesse tipo de situação? Nós não podemos considerar que seja esse o padrão da Justiça brasileira”.
Como forma de destacar as diferenças na Justiça brasileira, Lucimar Rosa lembra do caso de Mariana Ferrer, vítima de estupro após ser dopada em Santa Catarina por um empresário do ramo do futebol. Na sentença em primeira instância, proferida em 2021, o réu foi absolvido e, durante o julgamento, a vítima foi humilhada de maneira contínua, tendo, inclusive, fotos sensuais apresentadas ao júri. Além disso, a jornalista que cobriu o caso e expôs a truculência judicial, Schirlei Alves, foi condenada a seis anos de prisão. Por conta do caso, no mesmo ano, o Senado aprovou a Lei Mariana Ferrer, para proteger as vítimas de crimes sexuais em julgamentos. “Ela foi, mais uma vez, violentada moralmente e fisicamente, com a permissão do Judiciário. Isso é muito sério e vejo com menos otimismo quando começamos a comparar a Justiça”.
Para Lucimar, é tempo da Justiça brasileira aprender com a europeia e evoluir na garantia de proteção às vítimas de violação. “Do ponto de vista jurídico é preciso qualificar esses crimes e condenar as pessoas de forma muito efetiva, o que ainda não acontece”. Diante da fragilidade imposta à Justiça, as vítimas sentem-se desencorajadas a denunciar. “Quando elas silenciam, a gente fala que preferem não denunciar por não sentir que o Brasil tem uma rede estruturada. É difícil na delegacia, difícil na vizinhança, na comunidade. É muito complicado para a mulher e, por isso, as que conseguem denunciar são muito corajosas. Às vezes, nem a família quer que ela denuncie para não criar burburinho em torno dela na família. Aquela ideia de que, se ela sofreu algo é porque fez. Os gestos, as roupas ainda são usados para criminalizar o comportamento da mulher”.