Estela Scandola
Ainda não aprendi qual a idade que uma criança passa a ter memória dos acontecimentos, mas sei que quando escrevo lembro-me de muito longe. Talvez 3 ou 4… lembro da calcinha da valisére com rendinha que só usava aos domingos para ir à missa.
A frase dita “pedi ao Sagrado Coração de Jesus que só me leve quando ela souber se virar sozinha” (e suas múltiplas variações) recordo ainda. Eu estando no colo da mamãe, sentada em suas pernas e escutando sua voz em sussurro atravessando as costelas. Ela no alpendre, conversando com a Comadre Lurdes, o mascate de roupas de cama, o vendedor de cortinas, mulher da Avon, a tia Emília, na balaústra com dona Izabel, da varanda de uma com a varanda da outra com dona Silica… não sei exatamente… Só sei que foram muitas vezes até os meus 13 anos quando ela morreu.
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“Aprender a se virar sozinha” virou não somente uma combinação dela com o Sagrado Coração, sobretudo internalizou em mim de tal forma que pedir ajuda, dizer que preciso de outras pessoas para aquilo que posso fazer sozinha, é um sofrimento pontual e depois sigo sofrendo por ter sido incapaz.
É como um mourão de aroeira enfiado a um metro no roxo solo do tatuí que segurava o curral. É segurar o que vem, sem titubeio, sem insegurança… é segurar!
Pedir ajuda é um permanente repensar sobre minhas incapacidades… é como se precisar de outras pessoas fosse ser fraca.
Racionalmente sei que é ser forte, mas um bicho de memória me cutuca até doer grande… Eu não fui criada com a ideia que se podia ser forte e fraca ao mesmo tempo… tudo junto… Foi falta de ensinar coisas mulheridas…
Os exercícios de me virar sozinha eram constantes na minha infância… Eu aprendi a ir à Livraria Bom Caminho sozinha ainda antes dos 9 anos, me virar com dinheiro para os doces no Imai antes dos 7, comprar caçarola italiana para todos da casa na Padaria São José antes dos 9 e organizar a turma do handebol antes dos 12 quando já era líder do time.
Virar-me sozinha tinha muitas variáveis – dentro e fora de casa – desde os cuidados com a roupa, desencardir tênis branco em Itaporã (acho que isso era o pior de todos!), distribuir a manteiga produzida no sítio, varrer o enorme quintal sem errar o desenho da vassoura (mesmo quando fazia isso com a Creuza ou a Fátima era eu que minha mãe chamava pra falar se houvesse grafismos tortos das vassouras de guanxuma).
Acho que tinha um combinado também com o papai… o virar-se sozinha dele também tinha suas versões: aprendi a dirigir aos 12 na velha C10 alaranjada e troquei pneu sozinha aos 14 em dia de barro pra Laguna Carapã (condição para dar o carro preu dirigir sozinha); fazia romaneio de carga na serraria aos 11 e cubicava a carga. Papai chegava depois e olhava confiante. Eu quase nunca errava na matemática e no preenchimento datilografado das cinco vias com papel carbono azul da nota fiscal. Acho que a forma dele me educar tinha a ver também de eu ter que suprir suas expectativas de filho homem que não nasci.
Depois que mamãe se foi também aprendi a me virar sozinha nas decisões de estudo. Só comunicava a mudança de escola. O importante era passar de ano e bem! Já não tinha mais quem me cobrava todas as notas acima de 90. Então tirei o primeiro 40 em artes e meus primeiros 70 em história e geografia no Imaculada. Foi turbulento não ser a primeira da sala e nem ter família observando atentamente. Então passei de ano e fui pro Estadual Presidente Vargas.
Poder fazer coisas e “se virar sozinha” e, ainda receber aprovação pelas façanhas têm duas vias: desenvolve a autonomia e diminui a capacidade de pedir ajuda. Talvez a vontade deles é que eu fosse pouco dependente e conseguisse sobreviver já sabendo que era preciso dar conta da vida. E, vai ver que tinham combinado que eu iria ter que me virar sozinha sem ela e ele… não eram permitidos os erros… então eu não sabia
E aí, no tal colegial aprendi a política… o Centro Cívico, falar no megafone, organizar fanfarra… não tinha medo de ser aroeira e me preparava quase todos os dias para chuvas… não tinha ideia de tempestades na política… aliás, enfrentava o papai que era pedrossianista. Escrevia com pseudônimo para “O Progresso” e utilizava a máquina portátil que tinha ganhado do papai.
E aí vim para Campo Grande, morei em repúblicas e sempre com pouca grana, mas não pedia dinheiro nunca pro papai. O sustento financeiro, o cuidado comigo e dos meus é como uma escala pra avaliar se dou conta da vida ou não. E fazer isso sem reclamar é só um fato. Talvez agora, já passados quase 25 anos eu entenda porque no dia do divórcio eu disse à Promotora:
– Não, não precisa fixar pensão… o moço sempre compartilhou bem o sustento. Não teremos problemas. E, também, caso aconteça alguma coisa, estou eu, né?
E assim o foi! Sim, dei conta, estive lá!
Cada vez que dou conta de algo fico menos preparada pra pedir ajuda. É a mesma face da moeda. Talvez se eu pensar na forma circular da aroeira feito poste então é a mesma face, nem são duas! Eu mesma provedora e submissa ao machismo que não sustenta os seus e me elogiando como capaz…
Eu deveria ter aprendido a ser flor, mesmo sendo de aroeira tão linda e duradoura, mas não fui apresentada a essa possibilidade… Por isso que quando o Mauro me chamava de princesinha eu me irritava tanto…
Só me ensinaram por convencimento, pressão e elogios o “virar-me sozinha”. Pior é que eu achava lindo quando me chamavam de guerreira, lutadora… é tudo pra seguirmos mourão. Parecia missão de vida ser forte… e onde iria eu ser de outra forma?
E a igreja, então… A educação judaico-cristã nos faz sentir culpa até se chove ou não chove… tudo é culpa e é assim até quando a gente adoece… Tudo é culpa de nós mesmas… somos da associação das culpentas como diria a Cris. Quando se é talhada em aroeira e algo não vai bem, a maioria não acredita que se tem rachaduras. Pensam que é algo da casca e que a tora está intacta… não pensam na motosserra que usaram, no machado, na furadeira, no sol quente…
E, para madeira dura mostrar as fissuras é soltar seiva ao vento. Se tirada da mata, e “tratada” para não apodrecer, como vai florir? E o que terá que fazer para voltar a ser mato?
E pedir ajuda, dizer que não se pode tudo é um verdadeiro desastre para quem acostumou com mulheres que resolvem tudo? Às vezes é preciso ir em busca da seiva, uma fêmea que só se realiza vivendo em bando e ainda assim é singular… E mesmo que se precise de formão, furadeiras ou lixas que seja para trazer-nos à inteireza.
Madeira não cola mais em si mesma… nem que seja bambu ou cipó. Estes (mesmo sem colar depois de rachados) juntam-se em moitas e emaranhados, dançam em bando e cantam junto com o vento como canta a Vanusa
Muitas aroeiras são utilizadas para fazer cerca e, envolvida em arame farpado cercam vacas, seguram o estouro da boiada e servem ao namoro dos bem-te-vis. Talvez tivessem me educado para ser girassol… tal lindo, movendo-se ao sol… e passageiro. Ah, mas tem as rachaduras da aroeira que alimentam sementes e fazem brotar flores.
O que escutei da minha mãe, o que li no olhar do papai, o que fui sendo lapidada pelas exigências mulheridas, não fosse o machismo que me adaptei e vivenciei na ressequida virar-me sozinha eu poderia ser aroeira da mata.
Talvez pudesse ter sido algo mais cercada de flores, cipós e trepadeiras… e de abelhas que me polinizassem de desejos… ou ser essas madeiras em flor e outras tantas juntas, como as marias-sem-vergonhas vivendo em meio ao bambual.
Que raiva vai ser pra quem apostou que eu era madeira tratada pra não apodrecer, nem florescer e só segurar tempestades… acabei de lembrar… Eu invoquei há tempos a seiva bruxa que há na aroeira, estou brotando desde há muito… agora já me vejo florindo… e sinto cheiros de mel.