Mário Pinheiro, de Paris
A noite inaugurava novas estrelas no universo, lá fora, depois da chuva, nenhum gato rajado pra rondar e assustar os ratos. Num quarto da casa o chefe roncava de barriga pra cima como se houvesse comido metade do boi, pior que trator enguiçado e atolado na lama.
Do outro lado da cidade, Jacques Lacam, um médico psiquiatra de grande reputação na escuta, se preparava em seu consultório, tirava a poeira da mesa, limpava o cachimbo, recolocava os dossiês em seus lugares, revia o histórico dos pacientes.
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Lacam é o único entre os grandes intérpretes da doutrina psicanalítica a fazer uma leitura filosófica da obra de Sigmund Freud, foi marcado pela fenomenologia do espírito, de Hegel. Lacam introduziu na psicanálise a teoria do sujeito, ausente na obra de Freud.
No lugar de fazer do homem um ser consciente, ou definido pela consciência de si, ele olha o sujeito como determinado pelo inconsciente sem nenhuma relação com Édipo, aquele sujeito que se apaixona pela mãe.
Mas o paciente em questão teria errado de endereço, pensava ter batido primeiro na porta do açougueiro, depois na janela de Alexandre Ramagem, defensor da família do ex-presidente, mas não se sabe se era o estado profundo de sonolência, visto que havia degustado um suculento churrasco ou mesmo a preocupação e o medo do xilindró.
Logo que o pêndulo da igreja bateu, era hora de receber o primeiro paciente para a consulta psiquiátrica numa aurora resplandecente, mas o indivíduo estava acompanhado dos filhos e dos seguranças numa total situação de desespero.
Para o toc toc toc na porta do doutor, ele tirou da cintura sua habitual companheira 9 mm e deu duas coronhadas. Quem bate?, disse o doutor. Aqui é fulano e cicrano seguido da “santa família”, respondeu um dos aflitos com voz temerosa. Mas “santa família” é uma obra de Karl Marx, um revolucionário alemão, aquele da doutrina comunista, tem certeza que é isso mesmo?, retomou o doutor. Abre esta porra que eu preciso falar com o senhor. Mas e a “santa família”? Melhor esquecer, vamos falar do sonho, resumiu o desesperado.
A porta se abre, eles entram como vira-latas a procura do cocho. O primeiro a se deitar no divã é o filho mais velho que tem cargo no senado, mas o eleito da cidade carioca o arranca pela ponta da gravata e diz “sai daí chocolateiro, rei das rachadinhas, quem precisa da consulta sou eu”. Calmamente ele se deita, toma posição, cruza as mãos sobre a barriga, fecha os olhos…e aguarda as questões do psiquiatra enquanto seu pai cochicha na orelha do parlamentar expert em hot dog.
Diga-me o que te traz até aqui, lançou o doutor. Sabe, disse o paciente, meu maior medo é entrar na lista de pessoas vigiadas, sondadas pela inteligência do governo. Mas o que o senhor andou fazendo para chegar a este ponto, indagou o profissional pronto para uma seção de hipnose.
É que quando meu pai era o patrão de tudo e próximo de um impeachment, inteligentemente criei um “gabinete do ódio” e a Abin paralela no intuito de escutar os inimigos mais refratários, o plano deu tão certo que até perpetramos um golpe que acabou indo água abaixo, mas temos tudo registrado. O quê, tudo registrado?, perguntou o psiquiatra coçando a cabeça enfurecido, mas o senhor é doido? Arapongagem é coisa de alienado, puro maquiavelismo.
Então doutor, não me julgue, prosseguiu o paciente, a PF fez o famoso toc toc toc bem cedo na casa do papai, mas como ainda temos informantes na Abin, saímos de lancha, fomos pescar. E pegou algum peixe? Nem lambari, nem traíra porque não levamos nem vara nem rede. Enquanto isso a PF vasculhava a casa, estávamos fora, disse. Eles levaram algo? Sim, o meu celular, ai que ódio doutor, e também o computador com todos os dados da Abin paralela.
O que faço, doutor? Agora, relaxa e goza meu filho, porque deve vir chumbo grosso pela frente, resumiu o médico. Nesse momento o pai interrompe a seção e indaga, o doutor por acaso tem ligação com comunista, com esse tal de Marx, o outro chamado Engels?, essa conversa tá meio estranha, o senhor se formou numa escola militar ou foi doutrinado na faculdade? Se eu voltar pra presidência, pode ter certeza, mando prender estes dois sujeitos. Nenhuma nem outra, respondeu o médico.
Doutor, no meu caso, eu que era vereador federal, entrava e saía do Planalto como se fosse meu quintal, o que faço, me converto pra igreja evangélica? O pai retoma o diálogo, doutor, nós não temos inteli… sem terminar a frase, e se a PF requisitar meu passaporte, fuçar minha casa e… foi nesse exato momento que o patriarca conseguiu virar de lado em sua cama e acordou do pesadelo suando frio.