As investigações do Ministério Público Estadual sobre o pagamento de propina a gestores da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Campo Grande aponta que a situação era tão escancarada que até funcionários da associação sabiam do esquema. Dados bancários da esposa de um coordenador foram passados aos líderes do grupo criminoso.
De acordo com o Grupo Especial de Combate à Corrupção (GECOC), ficou comprovado que os investigados desviaram dinheiro público de convênio firmado entre o Governo do Estado e a APAE para o atendimento de pacientes ostomizados. A empresa beneficiada pagava 4% de propina sobre os contratados que conquistava.
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A suposta organização criminosa chefiada pelos irmãos empresários Lucas de Andrade Coutinho e Sérgio Duarte Coutinho Júnior direcionava as compras da APAE para a Comercial Isototal, de Lucas, segundo o MPE.
Em contrapartida, o coordenador técnico Paulo Henrique Muleta Andrade recebia 4% de todos os pagamentos feitos pela APAE à empresa.
“Tendo inclusive enviado as informações de seu cônjuge para que Lucas e Sérgio Coutinho efetuassem a transferência de propina, o que foi negado por eles diante da possibilidade de rastreabilidade do valor, o que demonstra a ilicitude da operação e o receio dos investigados”, relata o Ministério Público.
Na época da negociação, julho de 2019, saiu na imprensa a atuação da Receita Federal acerca de transações financeiras com valores superiores a R$ 30 mil, que deveriam ser declaradas ao órgão.
Diante disso, Sérgio Coutinho enviou áudio demonstrando preocupação sobre a possibilidade de rastreamento do valor que seria repassado para Paulo Muleta por meio da conta bancária pessoal da sua esposa, Giseli Mayuki Ikeda Muleta Andrade, “comprovando a ilicitude da operação e o receio dos investigados”, segundo o MPE.
“Ou seja, tipo, essa mulher aí que a gente nem sabe quem é vai ter entrada de mais de trinta mil na conta, ela vai receber intimação pra justificar a origem desse dinheiro, e ai, ai você já sabe né, aí começa a merda, né”, disse Sérgio ao irmão, conforme diálogo interceptado pelos investigadores.
“Em resposta, com o intuito de burlar os sistemas de controle, Lucas Coutinho orienta Sérgio Coutinho a exigir que Paulo Muleta aceite o pagamento da propina em espécie”, afirma o MPE.
Dias depois, Sérgio informa ao irmão: “passei pro cara em dinheiro”.
Inicialmente, o Paulo Muleta pretendia receber 6% dos contratos em propina, mas acabou aceitando 4% do valor pago na nota fiscal dos produtos comprados via convênio com o Governo do Estado.
Em outubro de 2019, em nova rodada de conversas, Sérgio orienta para que Lucas tenha cuidado com a possibilidade de Paulo Muleta fazer a gravação de conversas entre eles.
“Cara, eu não falo…não falei com ele nada de mais não cara. Quando eu vou na APAE eu converso só sobre as entrega, e no dia que eu fui lá com ele lá, eu só conversei, nada, nada, nem tocamo assunto APAE, nem tocamo assunto ostomia, a gente conversou de coisas aleatórias bixo, só se for você aí”, respondeu Lucas, em diálogo interceptado.
Segundo o Ministério Público Estadual, ocorreram diversos encontros “para formalização de tratativas escusas” e para os pagamentos de propina.
Em uma das conversas, Paulo Muleta envia comprovante de transferência bancária no valor de R$ 476.009,30 pagos pela APAE a Comercial Isototal, de Lucas Coutinho, como beneficiária. Então, ele questiona a possibilidade de ir ao encontro de Sérgio para receber o percentual acordado à título de propina.
Na sequência, entra em cena Kellen de Lis Oliveira da Silva, supervisora do setor de estomaterapia e curativos do Centro Médico e de Reabilitação da APAE.
Mensagens interceptadas indicam “habituais encontros escusos” de Kellen com Sérgio Coutinho. Em uma demonstração de certa intimidade entre ambos, o empresário, em algumas ocasiões, a chamava de “Kellenzinha”.
O esquema ganha ares de escândalo quando uma funcionária de Lucas, Antônia Taciana Alencar da Silva, diz para o chefe que uma pessoa chamada Josi afirmou que Kellen recebe propina de uma empresa. “Sendo respondido por Lucas de forma abrupta e evasiva, que tal conduta não importava para eles”, acrescenta o MPE.
Ao analisar os fatos relatados pelo GECOC (Grupo Especial de Combate à Corrupção), o juiz Eduardo Eugênio Siravegna Júnior decretou a prisão preventiva de oito integrantes do esquema, entre eles os irmãos Coutinho e Paulo Henrique Muleta.
A partir do cumprimento dos mandados de busca e apreensão, o MPE deverá reunir mais provas dos crimes apurados na Operação Turn Off.
A APAE Campo Grande, um dia após a operação, divulgou que suspendeu os contratos do coordenador técnico Paulo Henrique Muleta e da supervisora do Setor de Estomia, Kellen Lis Oliveira da Silva.
A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais diz que a medida foi tomada para que ambos possam se dedicar em suas respectivas defesas nos casos de corrupção na pasta da saúde e na educação.