Gilberto Costa – Repórter da Agência Brasil – Brasília
Passados 13 anos da instituição do Dia Nacional do Evangélico – lembrado nesta quinta-feira (30), conforme a Lei 12.328, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em setembro de 2010 –, a comunicação com os fiéis protestantes ainda põe à prova a capacidade do Poder Público de se comunicar com essa população e de informá-la.
A avaliação é do teólogo Marco Davi de Oliveira, pastor batista, e autor do livro A Religião mais Negra do Brasil (Editora Ultimato, 2015).
“O poder público precisa ir pra base e conversar com os pobres. Necessita se aproximar dessas pessoas, ouvi-las. Precisa aprender a linguagem”, pontua Marco Davi em entrevista à Agência Brasil, descartando estereótipos e clichês contra os crentes.
Coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Valéria Zacarias corrobora a opinião do pastor. “Todo o grupo social tem os seus códigos, tem os seus signos”, assinala ao defender “a importância e a urgência de fazer uma comunicação segmentada.”
Na opinião dele, a comunicação do poder público precisa ser mais dirigida, “como é feita, por exemplo, no carnaval”. “O governo faz campanha direcionada para a comunidade LGBTQIA+ sobre a segurança sexual, não há impedimento legal para se fazer comunicação segmentada.”
O sociólogo Paulo Gracino Júnior, professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor de A Demanda por Deuses (Editora Uerj/Faperj, 2015), avalia que “pastoras e pastores são interlocutores legítimos da periferia” e que é preciso abrir diálogo com representantes dos fiéis e debater os problemas das comunidades nas igrejas.
“O evangélico é uma pessoa empoderada. Eu posso conversar com ele. Ele tem demandas, não só demanda por bens espirituais. Ele tem demanda por saneamento básico, segurança, escola. Essas coisas com o tempo desarmariam a clivagem [divisão] que há entre esquerda e movimento evangélico”, opina o acadêmico, que é especializado em política e religião.
Gracino Júnior defende que haja “mais propostas” para resolver problemas apontados pelos evangélicos e “menos fisiologia”. Ele recomenda que no diálogo se abandonem preconceitos. “Tem esse problema que é a ideia de que o evangélico é irracional. Que não vai poder conversar com ele, porque ele é alienado.”
Negras e periféricas
Ainda não estão disponíveis os dados do Censo 2022 (IBGE) sobre a religiosidade dos brasileiros, o que permitiria uma visão mais atualizada sobre quem são os fiéis. A última referência de estudiosos é uma pesquisa do Instituto Datafolha, feita em dezembro de 2020.
De acordo com o levantamento, de cada dez brasileiros, três são evangélicos. Conforme os dados apurados, os crentes são o segundo bloco religioso mais numeroso do Brasil (31% da população), atrás apenas do percentual de pessoas que se declaram católicas (50%); mas bem acima das pessoas sem religião (10%), espíritas (3%), de credos afro-brasileiros (2%), demais crenças (3%) e ateus (1%).
O instituto quantifica que a presença dos evangélicos é bastante expressiva em todas as regiões do país: 39% no Norte, 33% no Centro-Oeste, 32% no Sudeste, 30% no Sul e 27% no Norte.
No conjunto dos protestantes, as mulheres são maioria (58%) – entre os neopentecostais a presença feminina ainda é maior (69%). Os crentes são predominantemente negros (43% pardos e 16% pretos) e tendem a ser mais jovens que os católicos: 62% dos evangélicos têm menos de 45 anos, enquanto a proporção nessa faixa etária é de 48% entre os católicos.
Estratégia de sobrevivência
“A maioria absoluta dos evangelhos é mulher negra e periférica”, sublinha o sociólogo Paulo Gracino Júnior, ao lembrar que elas são as pessoas mais vulneráveis na sociedade brasileira e precisam da fé como um recurso espiritual de sobrevivência.
“Elas veem a religião evangélica como estratégia de se manter em periferias que são extremamente violentas, extremamente machistas. A igreja é um lugar [em] que a mulher pode narrar seu sofrimento. Narrar e ser ouvida.”
À fala do especialista, a fiel Valdenice Rodrigues acrescenta que, além de contar suas histórias e serem escutadas, as mulheres procuram a igreja para entenderem seus problemas, para se proteger, se sentirem mais seguras e para serem abençoadas. “A igreja para mim é uma família, sabe? É onde a gente conhece outras pessoas, onde a gente se ajuda quando precisa.”
“Ali onde eu estou, as pessoas procuram muito para receber oração. Porque querem uma resposta de Deus. A maioria está com algum problema, se não é casamento ou financeiro, é algo assim. Aí procuram a igreja e pedem oração para a pastora. Ali, elas oram e recebem a benção, depois voltam para contar a benção que receberam”, conta Valdenice.
Evangélica desde o nascimento e trabalhadora doméstica, ela mora no Areal, região suburbana a aproximadamente 11 quilômetros do centro de Brasília. Aos domingos, quando a pastora presidente da sua igreja “dá oportunidade”, Valdenice é a “pastora Val” – como se identifica nas redes sociais – e prega no Ministério Todo Poderoso, da Assembleia de Deus. “O Areal é uma comunidade carente, não é classe média, a maioria aqui é do povo. Aqui é humilde”, relata.
Conservadorismo
Valdenice é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. “Deus fez o homem e a mulher pra constituir família. Então, nesse ponto de vista aí na Bíblia é errado. Eu respeito [casais homoafetivos], mas não concordo.” Também é contra a descriminalização do uso de drogas. “O mundo hoje já está tão difícil e se liberar isso aí vai ficar mais difícil ainda.”
Mas ela relativiza alguns valores conservadores. “Claro que se a mulher casar virgem tudo direitinho, bonitinho, isso é ótimo. Mas hoje em dia, no mundo que a gente vive, isso é difícil, nós sabemos disso, né?”
Para o professor Paulo Gracino Júnior, a adesão a valores conservadores, e eventual opção eleitoral, não faz das mulheres evangélicas brasileiras pessoas fascistas. “Não dá pra gente dizer que uma mulher preta, pobre e da periferia, é fascista. Ela não é fascista e nem massa de manobra.”
Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, salienta que visões de mundo como de Valdenice não são exclusivas aos crentes. “É como nos tornassem responsáveis por todo o conservadorismo brasileiro. Responsáveis por todos os retrocessos que essa nação enfrenta. Tentam nos transformar, como se a gente fosse o outro da nação”, reclama.
Em raciocínio semelhante, o pastor Marco Davi lembra que a intolerância contra outras religiões, como as afro-brasileiras, constantemente atribuída aos crentes, é muito anterior à instalação das igrejas evangélicas no Brasil. Para ele, aliás, esse tipo de intolerância “é muito mais antiga que qualquer outra.”
Contrário a qualquer discriminação religiosa, o pastor consegue perceber até semelhanças entre manifestações de participantes de cultos e de frequentadores de terreiros.
“A questão da corporeidade é muito importante para a manifestação da africanidade. Então, há utilização do corpo, essa utilização do corpo ela está no candomblé, como também está na Igreja Pentecostal. O corpo é o instrumento de adoração, o corpo é um instrumento que exala a espiritualidade. Então, isso para mim é fantástico neste país. Tomara que tenha muitas pesquisas sobre isso, porque é bonito demais”, opina Marco Davi.
Capilaridade e capital político
Duas importantes características das igrejas evangélicas são a diversidade (de denominações e filiações) e a capilaridade urbana. Em diferentes correntes, e também de forma independente, os crentes estão espalhados pelas cidades, especialmente nos locais menos valorizados.
“Os evangélicos têm essa estratégia de se dividir e de ocupar espaços. Qualquer pequena loja do subúrbio pode virar uma igreja. Então, eles têm uma conduta ativa no espaço público”, descreve o professor Paulo Gracino Júnior, que compara: “A Igreja Católica não consegue se multiplicar de forma consistente para dar conta da dinâmica urbana rápida do Brasil.” O estudioso acrescenta que outras religiões têm ritos de iniciação, o que não é exigido para frequentar igrejas evangélicas.
Presente em todas as regiões do país, e multiplicando templos nas áreas mais populosas e carentes das cidades, onde as igrejas tradicionais não se instalaram e o Estado não protege e acolhe as pessoas, as igrejas evangélicas se tornam lugares de sociabilidade, lazer e acolhimento.
“Muitas dessas igrejas, senão quase todas, elas têm programas assistenciais. Elas têm questões muito fortes de combate ao vício de bebida e de droga e outros problemas que enfrentam nas periferias”, assinala o cientista político Leonardo Barreto, que já prestou consultoria a partido político na formação de quadros evangélicos para disputas eleitorais.
A extensa malha de igrejas e o imenso contingente de fiéis no país renderam capital político em sucessivas eleições às lideranças evangélicas e seus representantes. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, em 2010, a legislatura iniciou-se com uma bancada evangélica formada por 70 deputados. Em 2014, a bancada reduziu-se para 57 parlamentares na Casa. Em 2018, o número de deputados evangélicos voltou a crescer e chegou a 85.
Nas últimas eleições, esse número caiu para 75, mas em compensação a bancada de evangélicos no Senado Federal chegou a 13 parlamentares, o maior número da história. A contagem é do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Leonardo Barreto assinala que há diferentes tonalidades nessa representação e que a bancada evangélica atua além da defesa de valores caros aos fiéis que são seus eleitores. “Eles querem transbordar para outros segmentos.”
Mais do que serem “atores de veto” contra eventuais pautas tidas como progressistas e identitárias, as lideranças evangélicas desejam se envolver mais com a agenda econômica. “Eles têm dito que são conservadores nos costumes e que são liberais na economia”, descreve Barreto.
O cientista político é categórico ao dizer que, independentemente da disputa política, a bancada evangélica defende o regime democrático. “É da natureza deles, está no DNA deles. Afinal de contas, essa ascensão ao poder acontece justamente depois de o país voltar a ter um regime democrático.”