A Justiça Federal condenou dois ex-servidores pela apropriação de diversas mercadorias doadas pela Secretaria da Receita Federal à administração executiva regional da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em Campo Grande, entre 2009 e 2012. A maior pena, de três anos e seis meses de prisão em regime aberto, foi ao ex-coordenador regional, Edson Fagundes.
O crime foi descoberto após denúncia de que um estagiário que trabalhava no setor responsável pelo inventário e armazenamento teria desviado mercadorias. O aprofundamento das investigações policiais, porém, mostraram o envolvimento de servidores públicos efetivos.
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Foram constatadas diversas irregularidades relativas a mercadorias doadas pela Receita Federal à Funai, consistentes na apropriação e desvio de bens doados em três remessas, duas em abril em 2019 e outra em setembro de 2010.
As investigações constataram que as mercadorias foram distribuídas às comunidades indígenas sem qualquer critério técnico ou objetivo, muitas vezes privilegiando alguns grupos em detrimento de outros. Ainda, diversas mercadorias foram apropriadas e desviadas em proveito próprio ou alheio, por servidores que detinham a posse daquelas em razão do cargo.
Tanto o inquérito policial quanto o processo administrativo disciplinar confirmaram as infrações administrativas por parte de todos os investigados, bem como do crime de peculato.
Foram denunciados o então coordenador regional da Funai, Edson Fagundes, e a chefe da Seção de Atividades Auxiliares da Coordenação Regional de Campo Grande, Maria Girlane Da Fonseca Bucker. Um terceiro acusado faleceu durante o decorrer do processo.
Maria Girlaine era responsável pela guarda e controle das mercadorias e detinha a única chave de acesso ao depósito em que eram armazenadas.
“MARIA GIRLANE dolosamente apropriou-se, desviou e concorreu para o desvio e apropriação em proveito próprio e alheio de bens móveis públicos de que tinha a posse em razão do cargo. A denunciada, possuindo a única chave do depósito, procedeu à reiterada e sistemática retirada de diversas mercadorias doadas pela Receita Federal sem efetuar qualquer tipo de controle”, diz a acusação do Ministério Público Federal.
Já Edson Fagundes assumiu o cargo de coordenador regional da Funai em julho de 2010, em data posterior ao recebimento das mercadorias.
“No entanto possuía responsabilidade de incorporar os bens permanentes e dar carga aos de consumo que foram remanescentes dos referidos atos de destinação. Ainda, era responsável direto pelas mercadorias doadas posteriormente em 21 de setembro de 2010 pela Receita Federal do Brasil no Ato de Destinação de Mercadorias – ADM nº 409/2010, que consistia de 395 fardos de mantas/colchas e toalhas no valor de R$ 4.114.092,94”, afirma a denúncia.
A defesa de Maria Girlane pediu sua absolvição por ausência de dolo. Edson Fagundes, por sua vez, alegou falta de provas e, em caso de condenação, que o crime foi cometido na modalidade culposa, além de ser necessário diminuição da pena devido a confissão.
O juiz Luiz Augusto Iamassaki Fiorentini, da 5ª Vara Federal de Campo Grande, condenou os réus em fevereiro de 2023.
“Registre-se que foram distribuídos mais de R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) em produtos, com capacidade de atender, se não a todos, grande parte das populações indígenas subordinados à Coordenadoria da FUNAI de Campo Grande/MS. Não obstante, o que se denota dos depoimentos dos indígenas, prestados, especialmente, durante o procedimento disciplinar instaurado na via administrativa, foi que determinados grupos foram privilegiados em detrimentos de outros, o que ocasionou situações em que comunidades indígenas, simplesmente, não foram atendidas em suas necessidades, apesar do grande volume de mercadorias doadas”, relata a sentença.
“Outrossim, há relatos de que a política para distribuição dos produtos ia muito além de mera requisição das lideranças indígenas, pautando-se na influência e nos interesses do próprio administrador (no caso, EDSON)”, prossegue. “Por fim, tem-se que a confusão entre o patrimônio público e o particular era prática recorrente na FUNAI, e de conhecimento público e notório pelos servidores e do coordenador regional”.
“Todos estes elementos são prova suficiente do envolvimento dos réus nos fatos delitivos imputados, havendo suficientes evidências de que agiram e colaboraram no desvio dos bens doados pela Receita Federal, que deveriam ser utilizados para atender as finalidades da instituição e das comunidades indígenas sob a sua supervisão”, definiu o juiz federal.
“O dolo é evidente, já que os réus tinham plena consciência da natureza pública dos bens desviados e, por meio de sua conduta, objetivaram favorecer a si próprio ou terceiros, em detrimento do interesse público”, afirmou Fiorentini.
Maria Girlane foi condenada à pena de 2 anos e 1 mês de reclusão, em regime inicial aberto, e 17 dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo, enquanto Edson Fagundes, à 3 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicial aberto, e 50 dias-multa.
As penas foram substituídas por prestação de serviços à comunidade e pagamento de prestação pecuniária em favor de entidade beneficente ou assistencial.
Ambos recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, pedindo absolvição ou diminuição da pena.
O relator do caso na 11ª Turma, desembargador José Lunardelli, alterou a sentença contra Maria Girlaine para peculato culposo; enquanto o ex-coordenador da Funai teve redução na multa, para 15 dias-multa.
“O contexto de total descontrole no trato da coisa pública junto a Regional de Campo Grande/MS da FUNAI sob a gestão dos coordenadores, atrelado a ausência de provas de que a ré era a única detentora da chave e senha do depósito, ou que anuísse com a conduta delitiva de seus superiores hierárquicos, são circunstâncias que afastam a existência de liame subjetivo entre os réus”, justificou Lunardelli.
“Não obstante, sendo o peculato infração penal punível também na modalidade culposa, cuja aferição depende de prova consistente de um atuar desleixado, inconsequente, temerário, ou descompromissado, subsumível à regra de extensão do art. 18, II, do Código Penal, ao conceituar como culposo o crime quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, vislumbra-se que o grau de diligência empregado pela ré MARIA GIRLAINE no trato das obrigações de sua função gerencial se revelou deficitário a ponto de merecer reprovação penal, haja vista que procedimentos básicos foram reiteradamente negligenciados, resultando em expressivo prejuízo”, fundamentou.
Com isso, a pena de Maria Girlane caiu para três meses e 11 dias em regime inicial aberto, substituída a pena corporal por uma restritiva de direito.
A decisão foi seguida de forma unânime pela 11ª Turma do TRF3, em acórdão publicado em 14 de novembro.