No último dia 25 de outubro, as mudanças na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) completaram dois anos da sanção pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), após serem aprovadas pelo Congresso. A maior alteração feita até agora nessa norma, que está em vigor desde 1992, já deixou a sua marca, garantindo absolvição de denunciados pelo Ministério Público.
Duas recentes sentenças do Judiciário estadual evidenciam a principal mudança no texto da LIA: a exigência de dolo (intenção) para que os agentes públicos sejam responsabilizados. Danos causados por imprudência, imperícia ou negligência não podem mais ser configurados como improbidade.
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A ação deverá comprovar “a vontade livre e consciente” do agente público de “alcançar o resultado ilícito”, não bastando a voluntariedade ou o mero exercício da função. Também não poderá ser punida a ação ou omissão decorrente de divergência na interpretação da lei.
Um caso que ilustra bem isso é da advogada Angelita Inácio de Araújo, denunciada por ter acumulado cargos e recebido salário como assessora jurídica da então vereadora Enfermeira Cida Amaral (PROS) e professora da rede estadual, mas sem cumprir expediente na Secretaria Estadual de Educação.
O que garantiu a inocência da advogada foi que, desde quando começou as tratativas para atuar na Câmara, ela informou que tinha outro cargo público. Apesar disso, o departamento de pessoal do Legislativo não fez objeção à nomeação. Argumento que a defesa destacou desde quando a denúncia foi apresentada pelo MPE.
Em sua decisão, publicada em 25 de outubro, o juiz Ariovaldo Nantes Corrêa, da 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande, apesar da acumulação das funções ser permitida pela Constituição Federal, ficou “evidente” a irregularidade na cumulação da remuneração, pois não houve efetiva prestação do serviço de professora.
No entanto, não foi comprovada a intenção de cometer o delito e ela foi absolvida. O Ministério Público Estadual conseguiu provar o acúmulo de funções e o recebimento de proventos sem cumprir o expediente como professora, porém, não teve sucesso em evidenciar o dolo da ré.
Outro episódio recente é o da acusação contra o ex-secretário de Obras Wilson Cabral Tavares e a ex-presidente da Agesul Maria Wilma Casanova Rosa foram inocentados da acusação de terem permitido a contratação de funcionários de construtoras para atuarem na Agência Estadual de Gestão e Empreendimentos em 2013 e 2014.
Após uma década dos fatos e cinco anos de tramitação, o processo contou com uma sentença de 18 páginas, sendo que a fundamentação ocupou cinco páginas. A dupla foi inocentada pela ausência de dolo, como alegaram as defesas.
“Não mais é possível a condenação do agente com amparo em dolo genérico e no caput do referido dispositivo, incabível condenação dos requeridos ante a ausência dos requisitos para a configuração do ato de improbidade administrativa”, explicou Ariovaldo Nantes Corrêa, em sua decisão publicada em 16 de novembro.
Apesar dos exemplos serem decisões de Ariovaldo Corrêa, o titular da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, juiz Marcelo Ivo de Oliveira já explicitou sua insatisfação com as alterações na Lei de Improbidade Administrativa.
O magistrado criticou as mudanças criadas para dificultar condenações, quando inocentou, por falta de comprovação de dolo, o ex-vereador Roberto Santos Durães (PL), a sócia e uma funcionária da empresa Digix da acusação de enriquecimento ilícito em ação de improbidade.
“A Lei nº 14.230/21 surgiu, ao que parece, com o intuito de dificultar ao máximo a caracterização e a punição pela prática de atos de improbidade administrativa, constituindo-se em mais um revés ao já difícil processo de combate à corrupção no Brasil”, afirmou Marcelo Ivo, com negrito dado pelo magistrado.
“Na hipótese, para a configuração do ato de improbidade, haveria a necessidade de ser demonstrado que o requerido Roberto Santos Durães possuía a consciência da ilicitude e o desejo de receber bens ou valores em razão da função pública que exerceria (quando ainda era suplente de vereador) e à época em que já atuava como vereador, sendo que, efetivamente, tal dolo específico não restou comprovado no presente caso”, disse o juiz, em sentença publicada em maio de 2023.
Além dos casos citados, as mudanças na LIA também ajudaram a livrar de possíveis condenações os ex-prefeitos de Campo Grande Alcides Bernal (PP), que se safou da acusação de ter inaugurado obras inacabadas com o objetivo de faturar politicamente nas eleições de 2016; Gilmar Olarte (sem partido) e Nelsinho Trad (PSD), deixaram de responder a denúncia por doações ilegais de imóveis; réus em operações como Lama Asfáltica e Coffee Break; além de ser usada pelas defesas para pedir extinção de ações com base na nova Lei de Improbidade, prolongando ainda mais o trâmite. Tudo isso em apenas dois anos.