Definir a escritora Cláudia Canto pode custar algumas teorias. Por hoje, passados 20 anos do início da carreira, é possível afirmar que a artista é um resumo de várias fugas: fugiu do cárcere, fugiu das estatísticas, fugiu da imposição de ser mulher preta e periférica, fugiu dos nãos que ouviu.
A escritora, com 20 livros publicados, fugiu mesmo de vassoura, o instrumento de limpeza com quem travava diálogos sobre o cotidiano em uma casa portuguesa de Lisboa, habitada por dois idosos de 90 e 80 anos acostumados aos modos da escravidão na África e por ela, escondida em um quartinho batizado de senzala.
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“Escrevi Morte às Vassouras com base no que vivi em Portugal, por 15 anos. Lá, fui, por um ano, cuidadora de idosos de um casal, uma família branca, que saiu da África. Costumo dizer que cai no Século 18, tanto nos móveis, quanto nos hábitos daquelas pessoas. Recordo que a senhora costumava falar que, comigo, poderia sair porque, afinal, eu não era preta”.
Na manifestação da estrutura do racismo da patroa, Cláudia Canto começou a refletir sobre cor, sobre colorismo, sobre feminismo e sobre ser uma mulher estrangeira preta em uma terra ainda habituada às benesses do colonialismo e, principalmente, sobre as origens indígena e negra. Ela desembarcou na Europa após sair de Cidade Tiradentes, na periferia de São Paulo, lugar para onde voltou apenas fisicamente, como escritora consagrada com publicações em três idiomas: português, alemão e inglês.
Foi na senzala portuguesa que Cláudia, dialogando com a vassoura, percebeu-se cidadã e passou a compreender os conceitos de racismo, de negritude e exclusão. “Eu ficava nos fundos e o meu alívio era a caneta”. Confortando-se nos escritos de Maria Carolina de Jesus, autora de Diário de Uma Favelada, começa a refletir sobre hábitos até então corriqueiros, mas que traduzem o racismo a que as mulheres pretas são sujeitas. No processo, Portugal já não tinha a dimensão da escritora e ela quis retornar ao Brasil.
“Quando volto de Portugal, caio em entra estatística, horrenda, de escritora, negra, periférica e sem editora, com um tema que ninguém queria saber. Costumo dizer que entrei na literatura pela porta dos fundos e é uma saba, porque demorei 20 anos para conseguir pagar a conta de luz com a minha arte, quando começo a escrever sobre mulheres brasileiras na Europa”.
O processo não perdurou apenas por persistência, houve reflexão e, no caminho, dor. “Comecei a estudar, mudar a mente. Estudei física quântica, fiz terapia, comecei a cortar os grilhões que me prendiam. Comecei a rever o que aprendi, de que preto e periférico não podia. Foi preciso tirar isso do subconsciente. Eu acreditava que não podia mesmo. Tinha vergonha de falar que sou escritora. Não falava com o orgulho de que falo hoje, com orgulho da minha história, da minha ancestralidade, que é indígena, mas negra também. Eu escondia, alisava meu cabelo. Isso tem tudo a ver com essa coroa, essa autenticidade da mulher e essa coisa toda eu colocava sob a mesa. Quando começo a me libertar dessas amarras, começo a ter lugar ao sol. Descobri riqueza e talentos na periferia, talentos pulsantes. Começo adentar espaços intelectualizados e a adentra espaços considerados não lugares são para nós negros, povos negros. Isso demorou 20 anos. Foi horrível o processo de maturação, de assumir minha identidade racial”.
Tão longa citação é justificada porque a escritora acostumou-se e quem a lê merece saber as ideias que dela ecoam. Eco reverberado na Universidade de Oxford, em Glasgow, no King ‘s College, em Londres, na USP (Universidade de São Paulo), na Unicamp (Universidade de Campinas), na Casa do Brasil Lisboa e no Espaço Cultural do Barreiro.
Quando pretende parar, nem a própria Cláudia Canto sabe. Ainda há um espaço de conquista para a redução de todas aquelas amarras, aquelas barreiras que não a impedia, mas ofuscam o brilho de algumas escritoras por aí. “Hoje eu descobri que era tudo mentira o que me falaram, que eu não nasci em berço de ouro. Eu nasci em berço de ouro. Consegui dar nó em pingo d ‘água porque eu tinha os livros. Os livros foram meu bote salva-vidas”.