Mário Pinheiro, de Paris
Em Esparta, o Estado dava preferência aos meninos sadios para serem futuros soldados guerreiros. Quem vinha ao mundo faltando um braço, uma perna, acéfalo, deficiente, era jogado no precipício. Esparta não tinha tratamento para mal-acabados.
O absurdo não está somente na condenação de Sísifo, segundo Camus, mas também no cotidiano onde a razão parece ter dado espaço ao sensível. Ter alguém deficiente na família é lidar com a sensibilidade, a doação diária, somente quem vive esta situação sabe o peso que carrega e não é a pedra redonda que Sísifo deve deixar no cume da montanha.
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Alguns enxergam na deficiência um sinal divino. Hesíodo sustenta que a lei grega e romana exigia que o pai deveria expor o filho que não era igual, abandoná-lo num cesto na correnteza do rio, ou, como Édipo, aos animais selvagens.
Priapre, fruto do amor entre Afrodite e Dionísio, era tão feio, imperfeito, deficiente e com um pênis muito grande, que causou o desprezo da própria mãe, deusa do amor e da beleza. Mas Priapre faz parte da mitologia grega e a realidade dos que nascem deformados hoje carece estudo, compreensão, dedicação, afeto e tratamento sem exclusão.
“O escândalo do nascimento de uma criança anormal confronta os pais na questão do absurdo. É uma das características do espírito humano de não tolerar o sem-sentido e de querer a todo preço atribuir uma significação aos fenômenos que se produzem, porque tudo é preferível contra o absurdo deste acontecimento aberrante e imprevisível que cai por cima de um casal. Mesmo se nós estamos atualmente em um sistema de pensamento e um sistema social que o considera como um problema a tratar, um azar a combater, uma derrota médica a evitar, a deficiência aparece não simplesmente como um estado, mas como um sinal a interpretar”.
A deficiência é uma irregularidade incompreensível que solicita vivamente esta necessidade de compreender e de explicar, na necessidade de se grudar na superstição, porque o pensamento racional não é suficiente.
A absurdidade é intolerável, senão humilhante. O acontecimento de um tal peso não deveria ser considerado como casual. Não é efeito do acaso, um fenômeno arrastado pelas consequências.
“Designar uma causa é dar sentido ao impensável, levar o desvio da natureza na racionalidade e reconstruir o absurdo dentro da lógica. É reestabelecer uma continuidade e reintegrar a sorte universal, afim de escapar a esta singularidade dolorosa que introduz a anormalidade da criança”.
O absurdo é o desumano, que permite de se aproximar do aspecto, muitas vezes, monstruoso. Monstruoso porque as pessoas viram o rosto, não se aproximam. A causalidade permite restaurar uma visão que garante um mundo onde os fenômenos obedecem a uma intencionalidade. É de alguma maneira uma tentativa desesperada de entrar na norma.
Convenhamos, em Esparta não havia o período pré-natal em que a grávida passa pelos exames e o médico acompanha a saúde do bebê. Mas o progresso da ciência, sobretudo da medicina, permite saber se a criança nascerá normal ou não. Se o bebê apresenta anomalias, se é acéfala, por exemplo, a decisão de colocar a criança no mundo cabe aos pais.
Este tipo de problema gera consequências no andamento do próprio casal que mais tarde vai se rasgar, ou se separar, nas dúvidas sobre a hereditariedade, à partir de acusações da anormalidade, do peso que traduz educar uma criança deficiente, da indiferença e dos olhos de outros.
Angústia e ternura fazem parte da fórmula pra receber ou rejeitar a anormalidade de uma criança que ainda não nasceu. Pior ainda se esta criança for fruto de estupro e se a vítima é menor e pouco importa se o agressor é parente, pai ou tio.
Médico, ao invés de estuprar pacientes, deveriam usar o juramento de Hipócrates em algo mais evoluído sem rejeitar o pedido por um aborto de uma menina estuprada. Neste caso o aborto seria a melhor solução e infeliz seria o juiz energúmeno a perguntar se na hora do estupro ela estava com ou sem calcinha. É desumano, absurdo e sem nenhuma razão. O absurdo é intolerável. E mais intolerável é não ter meios de oferecer vida digna e o bom tratamento ao deficiente que precisa de cuidados.