Quando Maria Auxiliadora Bezerra estava com cinco anos, embarcou em uma viagem que acabaria por transformar não apenas o rumo da própria família, mas de Campo Grande. Ao lugar de onde saiu, a aldeia Limão Verde, em Aquidauana, não voltariam nem ela, nem os seis irmãos e nem a mãe, a cacique Enir Terena (1955 – 2016). “Nasci na Limão Verde e sou a mais velha dos irmãos. Enquanto minha mãe trabalhava em empregos formais ou nos movimentos populares, ajudava a cuidar dos pequenos”.
Nas recordações de ser a filha da primeira cacique mulher terena de Mato Grosso do Sul, Auxiliadora carrega orgulho e superação, características adquiridas pela vivência privilegiada com a mulher cuja voz projetou Campo Grande para o mundo.
Isso aconteceu porque a luta de Enir Terena teve como resultado a primeira aldeia urbana do Brasil. “Em 1995, minha mãe reuniu algumas famílias. Juntas, as famílias ocuparam uma área de cinco hectares na região do bairro Tiradentes. Não foi nada fácil, pois a notícia que corria era a de que índios invadiram terras na região”.
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A área de terra, contudo, pertencia à Funai (Fundação Nacional do Índio), uma autarquia do governo federal. Na época em que a ocupação foi reconhecida como aldeia, 1999, Auxiliadora tinha 27 anos, e viu a materialização da luta pela sobrevivência dos povos indígenas, em todos os espaços e, não apenas, naqueles situados no campo, bem distante dos olhares urbanos.
“Na madrugada do dia 09/07/1995 chegaram 20 famílias, que moravam em diversos bairros de Campo Grande e, com muitas dificuldades, por isso aceitaram vir lutar em busca de uma moradia. Muitos preconceitos foram vividos e vencidos. A comunidade indígena urbana Marçal de Souza hoje é uma realidade”.
Embora a atuação tivesse na cabeça uma Terena, o nome de um cacique da etnia Guarani foi escolhido para batizar a primeira aldeia urbana do País. Marçal de Souza foi assassinado em 1983, em uma emboscada armada por fazendeiros. Nas páginas do Jornal do Brasil, na época, a nota sobre o tema fala mais de Marçal, o guarani amigo dos Terena, que dos criminosos, que seriam descobertos depois.
Também Marçal de Souza não poderia imaginar que a atuação da terena Enir, seus filhos e parentes, gestaria o modelo de aldeias indígenas urbanas único no País, contemplando as principais etnias encontradas em Mato Grosso do Sul. Entre as aldeias estão a Água Bonita, Darci Ribeiro, Tarsila do Amaral, além dos assentamentos urbanos Santa Mônica e Indubrasil.
Auxiliadora, que mora na Marçal de Souza, destaca que os agrupamentos urbanos que formaram as aldeias representam a continuidade do trabalho de garantia dos direitos indígenas. “Ainda hoje há muita discriminação. Minha mãe nunca negou que existisse (o preconceito), mas me ensinou a lutar contra”, lembra.
“Entre as principais conquistas para a Marçal estão 115 casas para as famílias, mas também há o trabalho com a educação. A escola tem uma grade curricular diferenciada, com disciplinas sobre Arte e Cultura Indígena e, também, sobre a Língua Terena. Temos rede de esgoto asfalto para toda a comunidade”.
A própria Auxiliadora já foi professora da escola local, função que encontrou para ficar mais próxima ainda dos ensinamentos da mãe, como uma frente de trabalho generalista pela causa indígena. “A educação foi a forma que encontrei de estar junto com a luta que ela sempre valorizou. Nunca deixei de acompanhar minha mãe em diversas reuniões, movimentos e ações envolvendo a comunidade”.
Com a oportunidade, a funcionária pública se enxerga como alguém que pode fazer a diferença. “Conviver com minha mãe me fez o que sou hoje, e aconteceu o mesmo com meus filhos. Lembro de uma vez em que faltou energia elétrica e ela explicou ao meu filho como era a iluminação na época em que ela era criança. Isso foi enriquecedor”.
Os filhos Sâmara, com 25 anos, e Kauhê, 16, estão entre os responsáveis em levar o legado que faz também de Campo Grande, uma cidade privilegiada pela convivência com a comunidade indígena. “Ser mãe de indígena é transmitir aos filhos nossos costumes, danças, e tradições e, também, acompanhar a evolução do mundo não indígena sem nunca deixar nossas origens. Fui preparada por minha mãe no dia a dia, todos dias, com exemplos bons conselhos e vivências”.