Enquanto boa parte dos habitantes de Campo Grande ainda dorme, uma multidão silenciosa está desperta no campo para garantir o cultivo do alimento diário dos moradores da cidade. Um desses madrugadores é o agricultor familiar Matusalém Lourenco Mendes, 59 anos, morador do assentamento Santa Mônica, pertencente à área de Terenos e distante 40 quilômetros da Capital.
Matusa, como é conhecido, já foi um “campo-grandense”, embora tenha nascido em Deodápolis, de onde partiu aos 18 anos em busca de estudo e trabalho. “Cursei administração de cooperativa e empresas rurais na UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), trabalhei e estudei com minha família enquanto estive em Campo Grande, mas eu sou do campo, e escolhi voltar pensando em qualidade de vida”.
Era 2006, quando o agricultor deixou o bairro Moreninhas, onde viveu durante todo o período em que esteve na Capital, para engrossar as fileiras do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), mas nunca deixou de manter relações com a Cidade Morena. “Conheci o MST e fiquei em um acampamento, depois, com a família, fomos assentados no assentamento Santa Mônica, que pertence politicamente a Terenos, mas a maioria de nós mantém relações com Campo Grande”.
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Distribuídas em 7 mil hectares do assentamento Santa Mônica vivem 765 famílias ligadas a três grupos, o MST, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a Fetagri (Federação dos Trabalhadores na Agricultura), respondendo pela produção de bens alimentícios comercializados, principalmente, em Campo Grande.
Matusa, por exemplo, produz quiabo, leite, limão taiti e mandioca. “Todos do assentamento vão para Campo Grande para fazer compras e vender nossos produtos, como a cidade é maior. Estamos a uma distância de 40 quilômetros de Campo Grande, enquanto de Terenos, a cerca de 70 quilômetros. Além de estar mais perto, a estrada oferece melhores condições”.
Para a Cidade Morena, a proximidade com o Santa Mônica é garantia do fornecimento contínuo de alimentos. “ Estamos aqui desde 2016, vamos completar de 17 para 18 anos. Produzimos alimentos diversos, como hortaliças que são entregues na Ceasa (Centrais de Abastecimento). Chegamos a fornecer de 8 a 10 toneladas de quiabo por semana para a Ceasa. Fora mandioca, milho, etc. Há época em que saem vários caminhões para abastecer a Ceasa. E há o que é vendido na periferia”.
Diversidade de produção é a lógica da agricultura familiar
Matusa explica que o abastecimento da cidade é favorecido pela lógica da reforma agrária de diversificar a produção. “Ninguém trabalha com apenas um produto. A lógica da agricultura familiar é diversificar a produção para consumo próprio e, também, para comercializar. A maioria produz para comercializar e são vários tipos de produção (leite, queijo, frango caipira, mandioca, frutas e hortaliças – é uma variedade). A produção local não está centrada apenas na subsistência, o excedente é comercializado”.
O agricultor defende, ainda, a ampliação das possibilidades de produção de alimento saudável e agroecológico por meio de novos assentamentos da reforma agrária.
“A reforma agrária é a primeira forma de distribuição de renda do País. Essa política possibilita a distribuição de renda para a família inteira, que vai produzir alimentos fornecidos para o País. Hoje, 70% dos alimentos são produzidos pela agricultura familiar. Isso precisa ser valorizado, precisa de investimento. Para Campo Grande, o assentamento é essencial. E temos uma coisa clara: o alimento que produzimos, consumimos primeiro. Nós fazemos o teste, consumimos. É diferente no agronegócio, que tudo o que produz tem agrotóxico. Na hora de distribuir crédito, contudo, o agronegócio fica com a maior parte e nós com a menor”.
Na avaliação de Matusa, com maiores possibilidades de áreas para a agricultura familiar, a cidade começa a solucionar um problema persistente: a fome. “Por isso, estamos na luta para a reforma agrária para o assentamento. Existe muita gente passando fome nas cidades. Se o governo os incentivar, somos capazes de fornecer alimentos para matar a fome de todas as pessoas do País”.
Para além da carência alimentar, a distribuição de terras para a agricultura familiar também contribui para a redução das desigualdades nas periferias urbanas.
“Nossa proximidade com Campo Grande permite avaliar as carências que a população vive. Metade dos moradores do Santa Mônica votam na Capital, onde buscam serviços de saúde e, muitas vezes, não encontram. Um exame pode durar meses para ser fornecido. Enfrentamos a falta de vacinas de emergência (soro antiofídico) contra picadas de animais peçonhentos. Se fosse sugerir uma política pública, seria a de atender ao cidadão da periferia, com saúde, creche e serviços essenciais”.