Diversos servidores foram ouvidos durante as investigações do Ministério Público Estadual que revelaram um esquema que teria desviado R$ 12 milhões do Hospital Regional de Mato Grosso do Sul (HRMS), em Campo Grande. Em comum nos relatos, estão reclamações de escassez de materiais hospitalares, compras acima do normal sem chegada dos produtos, indignação e suspeita de fraude.
Os depoimentos fazem parte das provas testemunhais colhidas durante as investigações da Operação Parasita, que resultou em denúncia que tramita na 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande, desde o dia 24 de julho.
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O ex-diretor e coordenador de logística do HRMS Rehder dos Santos Batista e três empresários ligados à Cirumed são acusados de, entre setembro de 2016 a dezembro de 2019, durante a gestão Reinaldo Azambuja (PSDB), emitir 45 notas fiscais “simuladas” com informações falsas sobre a venda de produtos ao Hospital Regional.
Uma enfermeira que atua como gerente técnica do ambulatório desde 2014, ao ser confrontada pelo MPE com uma lista de materiais supostamente comprados, afirmou que nunca recebeu os quantitativos apresentados e que “são quantidades absurdas, não compatíveis com o consumo do hospital”.
Além disso, relatou que ficou “indignada” ao ser alertada, em 2018, por uma colega da Farmácia do HRMS sobre uma possível fraude.
A queixa era de que a quantidade comprada era “muito acima do consumo” e que nunca chegavam, isso fez com que a enfermeira procurasse o então diretor e coordenador de logística Rehder dos Santos Batista, que disse essa questão “não era da alçada” dela.
Após desconfiar que usaram seu nome para fins de “sacanagem”, a gerente técnica do ambulatório ligou para Rehder dizendo que iria denunciar a situação. Logo depois, no estacionamento do hospital, foi abordada pelo diretor e por uma empregada da Cirumed, que “de forma incisiva” a fizeram desistir da denúncia.
A enfermeira confirmou aos investigadores que a relação de Rehder com a Cirumed era “muito estreita”, inclusive o próprio mencionava isso pelos corredores do hospital, onde a sua fama era de que “fazia coisa errada”. A servidora diz que tentou falar sobre os problemas com outros diretores, mas o caso não foi para frente, e concluiu que estavam “todos juntos”, então “largou mão” de reclamar.
Materiais não eram conferidos
Em depoimento considerado “estarrecedor” pelo promotor Adriano Lobo Viana de Resende, da 29ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, uma servidora que trabalhou no almoxarifado, entre o fim de 2016 e agosto de 2022, narra como funcionava a entrada das informações de produtos ‘recebidos’ pelo hospital e que, no fim, foi transferida de setor após desconfiar de irregularidades.
Em via de regra, a servidora lançava os dados das notas fiscais no sistema, mas não competia à ela conferir a real entrega. Confrontada sobre as movimentações de entrada e subsequentes movimentações com destino ao almoxarifado central, com a baixa no almoxarifado geral, ela informa que fazia as movimentações conforme ordens do coordenador e da gerência.
Sobre o procedimento ordinário quanto aos materiais hospitalares, ela explica que após a entrada no almoxarifado geral, eram destinados ao setor de Farmácia, chamado CAFH, que dispensava aos usuários, mediante prescrição médica.
Sobre a remessa do almoxarifado geral (onde recebiam os produtos) ao almoxarifado central e depois a setores, como a própria coordenação de logística, fazia conforme ordens da chefia.
Nestes casos atípicos, a servidora era informada pela chefia que os produtos seriam entregues no futuro, como uma espécie de crédito junto às empresas, mas afirma que jamais conferiu tal situação, pois não era sua função. Questionada sobre esta situação, afirma que realmente aqueles produtos não entraram no hospital.
“Ficava sim se questionando, porque era muita nota, mas só cumpria as ordens”, disse a funcionária ao MPE. Ela acrescenta que, após um tempo, começou a questionar sobre as entradas que não eram reais, então acabou transferida para outra função no hospital.
Ainda sobre as notas fiscais, a servidora diz que havia uma comissão que assinava no verso das notas, porém, de fato não conferiam, que ela sempre levava as notas e “o pessoal assinava sem qualquer conferência”. Porém, alega que não via maldade naquilo, era um procedimento de praxe só assinar sem conferir.
Falta de materiais e indignação
Em diligências no Hospital Regional nos setores em tese destinatários dos produtos hospitalares, conforme informado por O Jacaré em dezembro de 2022, a promotoria constatou que não houve qualquer entrada destes materiais, muito menos solicitação direta ao almoxarifado.
Os depoimentos dos servidores que trabalham no Hospital Regional corroboram com a denúncia. Se repetem declarações como “este volume informado [na nota fiscal] sequer caberia no espaço físico do setor”, “esclarece que no próprio setor não existe um espaço para armazenamento”, “a realidade do hospital é a escassez e a falta da maioria destes produtos”.
“Tem falta de vários produtos, como curativos especiais e bolsas de colostomia, a realidade ali sempre foi de escassez destes produtos, quando não a falta, e sem os quais o atendimento à população fica prejudicado”, relatou uma enfermeira que trabalha no setor de cardiologia desde janeiro de 2017.
Uma enfermeira que atuou no Centro de Materiais Esterilizados de 2008 até novembro de 2019 foi questionada e informou que jamais receberam 30 kits de limpeza de autoclaves, que solicitam um que dura três meses, a quantidade de 30 é incompatível até com o espaço.
“Esta quantidade informada causa muita indignação entre os profissionais, pois nunca existiu e sua constante falta prejudica muito tanto os profissionais quanto os pacientes”, desabafa a servidora.
De acordo com o MPE, o esquema consistia na falsa compra de materiais hospitalares em quantidades “excessivamente elevadas e desproporcionais ao uso regular do hospital”, desprezando o histórico de consumo, sendo que estes nunca seriam utilizados, porque não davam entrada no estoque do HRMS. Para isso, eram emitidos atestados falsos de recebimento, “dissimulando a baixa, e propiciando pagamentos por produtos jamais entregues” ao Hospital Regional.
Segundo apurado por investigação da 29ª Promotoria de Justiça na Operação Parasita, após a emissão das notas fiscais simuladas pelos empresários e o falso recebimento do material forjado diretamente ou por ordem do coordenador e diretor Rehder Batista, eram providenciados os pagamentos das ordens bancárias, de forma a efetivar o desvio de dinheiro público, que alcançou o montante atualizado de R$ 12.014.362,10.
Na denúncia, o Ministério Público Estadual solicita liminar para indisponibilidade dos bens dos acusados, no valor de R$ 12.014.362,10, para garantir o ressarcimento integral aos cofres públicos em caso de condenação pela prática de improbidade administrativa.
Caso condenados, os denunciados devem perder os bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 12 anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 12 anos.