Quando Nicolas nasceu, há cinco anos, Vanessa dos Santos Costa Marques, 30, e Ivo de Melo Marques, 38, ainda desconheciam como aquela nova vida mudaria o modo do casal encarar e interagir com o mundo. O pequeno foi diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista), um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por diversas condições de déficits na comunicação, na interação social e na linguagem não verbal.
Começava uma corrida para o tratamento, porque a cidade onde a família mora, Ponta Porã, oferece o serviço na rede pública de maneira residual e era preciso construir uma rotina para o desenvolvimento de Nicolas.
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Com o diagnóstico em mãos, Vanessa e Ivo iniciaram a jornada de reajuste da vida familiar. Ela precisou deixar as atividades como técnica de enfermagem enquanto ele assumiria o sustento familiar com o salário de bombeiro.
O emprego público do militar garantiria, ainda, o plano de saúde pela Cassems (Caixa de Assistência aos Servidores do Estado de Mato Grosso do Sul). E, pelo plano de saúde, o pequeno teria acesso à equipe multidisciplinar necessária ao desenvolvimento.
Tratamento representou restrições orçamentárias à família
Manejar o tratamento do filho direcionou o casal a mais restrições orçamentárias. Além do salário de Vanessa, que já não entrava, as consultas do menino, embora subsidiadas, necessitavam de contrapartida. Nada, contudo, era comparado ao que os dois passariam a observar na saúde pública de Ponta Porã.
“Existem ao menos 300 crianças com diagnóstico fechado de autismo na cidade. As famílias dependem do serviço público, porque, quando há suspeita do autismo, é preciso disponibilizar uma equipe multidisciplinar para garantir o desenvolvimento da criança”, explica Vanessa.
Ela chama a atenção para o fato de Ponta Porã ser polo do SUS (Sistema Único de Saúde) das cidades de Amambai, Bela Vista e Tacuru, cujos números de casos de autismo ainda são subnotificados. A falta de diagnóstico e tratamento pode representar elevado custo para as famílias, alerta Ivo. “A neuroplasticidade é construída até os cinco anos, e é preciso do diagnóstico precoce para que a criança receba as intervenções necessárias”.
Assistir a situação das famílias com filhos diagnosticados ou não com TEA fez com que o casal decidisse intervir de forma a garantir a aplicação da legislação. “Participamos das conferências municipais de saúde e, depois, da nacional onde solicitamos, junto com pais de outros estados, uma política pública voltada para crianças com autismo”, revela Vanessa.
As conferências de saúde acontecem em intervalos de quatro anos, e integram a lei que regulamenta o SUS. Por meio delas, as demandas da sociedade são ouvidas com o objetivo de avaliar, planejar e fixar ações e diretrizes que melhorem a qualidade dos serviços de saúde.
Participação em conferência para garantir a aplicação da lei
Em 2023, Vanessa representou Mato Grosso do Sul e, juntamente com enviados de Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Roraima e Sergipe, ajudou a aprovação da política que vai garantir a ampliação dos recursos para os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), com a implementação dos CERs (Centros Especializados em Reabilitação de Pessoas com Transtornos do Neurodesenvolvimento).
Os centros serão dedicados a pacientes com TEA e TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade), entre outros transtornos do neurodesenvolvimento, com suporte de equipe multidisciplinar formada por neuropediatra, neurologista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeutas ocupacionais, psicólogos, psiquiatras, pediatra, assistente social, nutricionista e odontólogo de forma permanente e continuada. A inclusão da política garante o cumprimento da Lei Federal nº 12.764, sancionada em dezembro de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
Enquanto a nova política ainda não é implementada, Vanessa e Ivo reforçam o envolvimento com as famílias que necessitam de apoio imediato para o tratamento das crianças em Ponta Porã. De acordo com Ivo, a atuação ocorre por meio da AAPP (Associação dos Pais e Amigos dos Autistas), entidade que recebeu recentemente o título de utilidade pública e está em busca da construção de uma sede. Hoje, explica, há pais que esperam há dois anos por atendimento.
“Para uma criança, contudo, cada dia sem atendimento representa maior distância da independência, prejudicando o indivíduo e a família”.
Atendimento é restrito e insuficiente para autistas em Ponta Porã
O serviço público pontaporanense oferece atendimento mensal com uma fonoaudióloga e, a cada 15 dias para crianças com quadro agravado. “O problema é que há crianças que precisam da fono até duas vezes por dia. Isso é fundamental e elas precisam evoluir, porque, quando isso não acontece, elas regridem”, alerta o militar.
Como parâmetro para a necessidade de uma pessoa com TEA, o casal cita a rotina do filho, cuja agenda semanal comporta a escola, apoio com profissional em psicopedagogia, fonoaudiólogo, psicólogo e terapeuta ocupacional. Nicolas ainda faz equoterapia, uma realidade distante da grande maioria das crianças da cidade e da região.
Vanessa cita que a dinâmica de atendimento médico também precisa ser reconsiderada, porque o modelo on-line não é o mais adequado para os pacientes com TEA. “É necessário avaliar a criança de outra forma e compreender as necessidades, o que a consulta on-line, que é a oferecida hoje, não consegue suprir”.
Ivo ressalta, ainda, que também é necessário pesar a necessidade de acompanhamento dos pais, que passam por diversas fases diante de uma criança que não é neurotípica. “Vamos continuar esse trabalho, porque queremos que, assim como nosso filho, outros pais também possam assistir o desenvolvimento de seus filhos”, destaca o militar.
Já Vanessa, conclama mais envolvimento com a causa: “a população em geral precisa olhar para essas crianças. O sonho de um pai e de uma mãe é ouvir papai, mamãe, mas há crianças que precisam desse trabalho multidisciplinar para isso. Eu lembro como fiquei emocionada quando o meu filho pediu água. É sobre isso”.