Conhecer a professora Isa Bezerra Lopes é a garantia de uma certeza: ela nunca reclama e sempre está a sorrir. Trata os dissabores da existência com a mesma leveza e alegria direcionados aos momentos de prazer. Não que a junção de vivências dos passados 72 anos também deixem de transparecer na face as privações naturais a toda gente, mas a Isa escolheu, mesmo assim, gastar seus dias em longas e altas risadas.
E foi com essas e tantas outras características, que decidiu seguir o exemplo da mãe e lecionar. “Minha mãe era professora da zona rural. Na sala dela havia crianças da primeira, segunda, terceira e quarta séries, na primeira fileira, todas juntas”.
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O compromisso com o aprendizado dos estudantes, os diários de classe, o giz de quadro e os muitos desenhos de letras miúdas só apareceram na vida da mãe após longos anos vividos sob o jugo de privações e do racismo, chagas cujas sequelas não deixam a memória de Isa. “Minha mãe morou com uma tia em Corumbá, saía cedo para buscar água. Não davam nada para minha mãe comer. Ela só entrou em uma sala de aula e foi alfabetizada aos 14 anos”.
O passado daquela mãe a fez superprotetora, e a criança Isa tinha pouca liberdade para as lidas da meninice. “Quando eu era criança, não me deixavam brincar. Os vizinhos é que iam para a minha casa. E, por volta dos oito ou nove anos, meus pais me mandaram morar com uma tia em Campo Grande para estudar. Sai de perto do meu pai e da minha mãe. Eles eram muito bons comigo, mas o serviço da casa ficava sob minha responsabilidade”.
Do interior de Mato Grosso do Sul para Campo Grande, a educação também trouxe outro sabor, a diversão ao embalo de tardes ao som de marchinhas carnavalescas, o que chamou a atenção do pai. “Quem estava na cidade tinha uma realidade diferente de quem era da área rural. Uma vez meu pai foi me visitar e eu estava chegando do Carnaval, da matinê. Ele falou bastante para mim. Também falava para não assistir novelas, quando eu ia na casa deles passar férias. Dizia que era tudo mentira”.
Filhos, dores, alegrias e muitos netos
Hoje, Isa sabe das inverdades reveladas nas novelas, mas a teledramaturgia era apenas uma forma de sorrir e, logo, ela conheceu outras mais intensas, verdadeiras e duradouras, ainda que com um tipo de dor inexplicável e real apenas para quem a sente. “Tive quatro filhos. As duas primeiras meninas e dois meninos vieram depois. A segunda, quando estava com oito meses, faleceu de pneumonia. Meus filhos me deram três netas, três netos e uma bisneta”.
Os filhos e netos acostumaram muito cedo à multiplicação do afeto da mãe-avó e professora em cargos de maior envolvimento com a comunidade escolar. Estavam habituados ainda à busca intensa pela superação, favorecida pela recordação áspera do racismo.
“Fui convidada para ser diretora de escola. Eu fui indicada, mas neguei o cargo. Foi quando a escola passou por uma forte chuva, quando todo o teto foi derrubado. A prefeitura reformou tudo e, quando os funcionários foram verificar a obra, uma mulher, que eu chamo de Maria Malvadeza, sentou na mesa reservada para a direção, riu e disse: – Já pensou você, Isa. Como diretora? Eu percebi todo o racismo daquela fala, lembrei de tudo o que minha mãe havia passado, vi como aquela pessoa debochava da minha competência e decidi aceitar a vaga. Só não entenderam porque eu chorava tanto ao comunicar, mas eu estava lembrando da minha mãe. E o salário que eu tenho hoje é graças a essa fulana”.
Para superar o racismo é preciso não repeti-lo
Superar os episódios de racismo repetidos contra ela e a mãe refletiu no trabalho direcionado às comunidades carentes de Campo Grande, alvos de um tipo de atenção ainda inédito na educação. “Fui nomeada como vice-diretora na vila Nhá Nhá, considerada um local perigoso onde ninguém ficava. Foram seis vice-diretores antes de mim. Eles não ficavam, mas eu morava na comunidade e isso era diferente. Minha permanência foi uma surpresa e houve, até, quem não entendeu o porquê, mas eu era respeitada por todos. Me tratavam como Tia Isa, mesmo as pessoas consideradas perigosas”.
Tendo o trabalho reconhecido, Isa foi nomeada para a direção da escola estadual do bairro Santa Carmélia, onde gerações fazem questão de compartilhar com ela vivências só extensíveis à família e aos amigos queridos. “Fui, então, nomeada para o bairro Santa Carmélia, onde assumi o cargo de diretora. Durante muito tempo, recebia fotos dos filhos dos alunos. Hoje eu recebo dos netos dos meus alunos”.
Se o afeto da comunidade escolar é, ainda hoje, presente, não faltaram os momentos para o exercício da parte de Isa responsável pelo desejo de permanecer e ser apenas quem é. “Fui professora dos meus netos. Uma delas, a Céu, coitada, na terça-feira já fazia a tarefa de quinta e chorava. Quando ela passou na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) para Direito, fui a primeira pessoa a quem o pai dela ligou. Isso aconteceu também com os outros netos. Tinham que fazer a tarefa, arrancar a folha do caderno, refazer. Hoje, dois estão na UFMS, sendo um deles egresso de escola pública”.
Após perder perna em acidente, Isa pediu a Deus mais tempo com os netos
Comemorar o sucesso dos netos foi o presente concedido por alguém tido como elevado, superior e, principalmente, onipotente, a quem Isa pediu um pouco mais de vida, quando essa condição quase a fez virar saudade. Em 2015, em uma dessas noites demoradas, quentes e comuns de Campo Grande, perdeu a perna direita ao ser colhida por uma motocicleta.
“O acidente ocorreu às 20 horas. Eu estava atravessando a rua, olhei para o sinaleiro e ele estava fechado, abaixei a cabeça e segui. Nesse momento, o sinal abriu e o motociclista vinha voando, bateu em minha perna e ela partiu. Não cai, só depois que olhei para a perna e vi o sangue, acho que foi quando assustei”.
Sem conversas, sem explicação, tudo mudou e algo da professora partiu, tal como a perna, embora o todo quisesse ficar. “Na hora do acidente, o que eu pedi para Deus era que queria ficar mais um pouquinho para acompanhar o crescimento dos netos. Então, graças a Deus eu não morri. Isso seria diferente se fosse um carro. Pela intensidade da batida, eu teria morrido”.
Na cama de hospital, sem uma das pernas, Isa não se permitiu ter sentimentos modestos. “Soube, quando estava internada no hospital, que a mãe do rapaz chorava dia e noite, com medo de ver o filho processado na Justiça. Foi quando eu mandei um recado para ela, disse que não precisava se preocupar, porque o filho dela não bateu de propósito. E outra, eu estava viva”.
Viver é sempre uma perspetiva para novos desafios mais fáceis de transpor com a disponibilidade de braços cuidadosos e ombros solidários. “Fiquei um ano na cadeira de rodas. Eu contei com muita solidariedade. As pessoas carregavam minha cadeira. Na campanha política, fui para Goiânia e para Corumbá, fui para todo lugar”.
Cadeira de rodas, andador e prótese, um novo corpo e uma nova realidade
Sem vontade de parar, a professora Isa aceitou que tinha uma nova moldura de corpo, com necessidades diferenciadas daquele que a suportou a maior parte da vida. “Eu pensei que, com a chegada da prótese, já iria andar, mas precisei enfrentar ainda mais um ano de fisioterapia. Fiquei de 2015 a 2021 na cadeira de rodas. Tive dificuldades para aprender a andar e, quando eu saí da cadeira de rodas, fiquei no andador. De repente, o médico me disse que o que me atrapalhou foi o medo”.
As partes que não nasceram com Isa há 72 anos, exigem mudanças de hábitos, dos alimentares aos movimentos. Nada é uma sentença a quem entende a necessidade de governar um corpo novo. “É preciso ter cuidado com a regulagem da prótese, já que parte dela é de borracha e pode ficar desnivelada com o calor. Hoje, o médico diz que preciso cuidar para não engordar. Faço pilates e isso ajudou a abrir as costas. Faço um pouco de musculação, tento evitar o açúcar”.
Entre adaptações, dietas e necessidades novas, Isa encontra tempo e, claro, ritmo, para atuar com a realidade que, independente do desejo pessoal, segue e inventa novos motivos para tristeza e superação.
“Participei de uma escola de samba, depois que minha filha passou por uma separação. Ela dizia: vamos, mãe no Carnaval? Vamos! Vamos, mãe viajar? Vamos! Era em prol da minha filha. Mãe é mãe”. Hoje, participo do grupo de mulheres deficientes e aprendo muito com elas. A maioria ali nasceu deficiente e você não ouve uma reclamação. Pelo contrário, elas dançam, pulam. Têm um grupo de dança do ventre e foram para um festival nacional”.
Gratidão é o combustível da superação
De desafio em desafio, de superação em superação, a gratidão é estampada na trajetória da professora. “Tive assistência da Apae. Fiz fisioterapia, ganhei cadeira de rodas, andador. Caros, mesmo, são os remédios. Um deles custa R$ 800 e isso é pesado. Lá, contudo, é grande aprendizado. Foi onde descobri que nem tenho problemas na comparação com as pessoas que são atendidas. Falo que tem gente de todo jeito e vejo as mães carregando aquele filho pesado nos braços, chegam de ônibus, mas não têm dinheiro para pagar a condução na volta. No lugar, porém, é tudo de primeira linha. Eu mesma preciso trocar a minha prótese, que está bem desgastada”.
Envolta em vida, Isa sugere às gerações mais novas o mantra lá do passado, seguido pelos pais que a embarcaram para Campo Grande, impondo saudades e limitações: “estudem!”.