Mato Grosso do Sul passou a ter, a partir de maio, um médico abertamente defensor do SUS (Sistema Único de Saúde) para ocupar o cargo de superintendente do Ministério da Saúde. Ronaldo de Souza Costa foi indicado pela bancada do PT e teve o nome aceito pela ministra da Saúde Nísia Trindade, fechando um ciclo de discussões sobre quem deveria ser a pessoa mais adequada ao posto.
De perfil técnico, o médico é um dos poucos nomes no Estado a integrar a reforma sanitária originária do SUS e, se hoje essa a característica o fez ideal para comandar a superintendência, no passado foi usada como o combustível para puni-lo.
Veja mais:
Novo superintendente do Ministério da Saúde, Ronaldo Costa dá a volta por cima em MS
Médico do HU vai assumir superintendência do Ministério da Saúde em MS
Enquanto aliados esperam, PT emplaca primeiros indicados em cargos federais
Advogado Alexandre Cantero é nomeado superintendente regional do Trabalho em MS
Ronaldo Costa é paranaense, do município de Santa Cruz de Monte Castelo, mas foi na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) que concluiu Medicina após passar a adolescência com a família no interior de São Paulo e ter uma breve passagem por Teresópolis (RJ).
Na universidade, a necessidade de reforma do currículo o alçou para a política e, em parceria com os colegas, foram iniciadas as discussões sobre a formação de médicos adequados às necessidades do País. “Fui secretário e, depois, presidente do diretório acadêmico. Em 1986, fizemos um encontro de estudantes em Fortaleza, no Ceará, e fundamos a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina com o slogan: ‘basta de aprender nos pobres para só curar aos ricos’”.
Foi o ponto de partida para a mudança, com a integração das disciplinas, permitindo maior compreensão por parte dos futuros médicos sobre o que estudavam. Já nessa época, o posicionamento político evidenciou as barreiras a serem enfrentadas por Ronaldo Costa.
“Precisei transferir o curso da Universidade de Teresópolis para a Unirio, após sucessivas reprovações na disciplina de obstetrícia comandada pelo professor Eduardo Bruno. Ele era um legista do período da ditadura militar e fornecia falsos laudos sobre a morte de presos políticos pelo regime. Por isso, fiz a prova para a Unirio, onde fui muito bem acolhido e o meu hospital escola foi o Gaffrée e Guinle”.
Defensor da saúde do trabalhador
Após o trabalho no hospital e, formado, Ronaldo Costa passou a ter contato com a realidade que o moldaria como defensor da saúde do trabalhador. “Formado, fui trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Química. Foi quando eu vi que os trabalhadores adoeciam, ficavam enfermos, não tinham direito à indenização ou aposentadoria. Esses trabalhadores julgavam ter domínio sobre o trabalho, mas tinham a saúde monitorada pelos empregadores sem ter acesso aos resultados de testes de intoxicação”, lembra.
“As empresas, quando percebiam que os níveis de intoxicação estavam elevados, despediam esses trabalhadores e eles, por terem experiência com a indústria química procuraram outros empregadores do mesmo ramo. Dessa forma, continuavam no ciclo de intoxicação, fazendo lesões em outros órgãos. Essa era uma forma de promoção do adoecimento do trabalho, da doença e da geração de lucro”.
Paralelo ao trabalho no sindicato, Ronaldo Costa passou a atuar no ambulatório do Banco da Providência, de responsabilidade da Arquidiocese do Rio de Janeiro e fundado por Dom Helder Câmara. As ações, devolvidas nos anos 80, contavam com uma equipe para atendimento para pessoas em situação de rua, na prostituição ou com HIV positivo.
“Foi lá que, com a companheira Maria Inês Linhares, percebemos o retorno de muitas pessoas com HIV positivo. Apresentamos, então, a Dom Eugênio Sales o projeto para uma casa de acolhimento, onde as pessoas poderiam ser tratadas”.
Saúde e solidariedade podem andar juntas
O trabalho contou com apoio da Arquidiocese do Rio, do governo do Rio de Janeiro, que providenciou o imóvel e da arquidiocese da Alemanha. “A casa definida pelo governo do Rio fica no bairro Cosme Velho e pertencia a um casal de nazistas que fugiu da Alemanha para não sofrer as consequências das punições pela guerra. Esse casal não tinha herdeiros e, veja só, o imóvel passou a ser usado para ajudar na recuperação de pessoas em situação de rua. A reforma ocorreu com recursos da arquidiocese da Alemanha”.
Embora o trabalho no Rio de Janeiro estivesse evoluindo de maneira satisfatória, Ronaldo Costa decidiu no início dos anos 2000, mudar com a família para Campo Grande, onde moravam os pais, porque a mãe estava com câncer.
“Decidi vir para acompanhar minha mãe e ficar menos preocupado. Quando vim, estavam abertos concursos para o Hospital Regional Rosa Pedrossian e para a Prefeitura de Campo Grande. Passei nos dois concursos, me mudei definitivamente em 2001, e minha esposa, Solange, em 2002, após concluir o curso de Direito. De início, trabalhei para o município e, no Regional, onde passei em primeiro lugar, fui o fundador do serviço de clínica médica”.
Surto de infecção hospitalar matou 32 pacientes em meio à negligência da direção do HR
Foi em 2003, que a situação no Hospital Regional elevou as preocupações de Ronaldo Costa, porque houve um surto de infecção hospitalar no local. “Era um surto de uma bactéria muito grave. Começamos a investigar porque os pacientes estavam ficando doentes e o quadro se agravava subitamente. Fizemos uma pesquisa e começamos a monitorar ambiente e paciente, quando descobrimos o surto pela pseudomonas aeruginosas e tomamos todas as providências”, conta.
“Não fomos à imprensa, tomamos as medidas internas necessárias para conter o surto. Uma outra pessoa, da enfermagem, fez a denúncia à imprensa e eu fui acusado. Isso gerou um processo administrativo aberto pelo então diretor Salvador Arruda. Foi decidido, junto com João Paulo Esteves, a minha demissão por insubordinação”.
O episódio dividiria a carreira do médico que, com a família, suportou o elevado peso do descontentamento de parte da classe política sul-mato-grossense. “Fiz a denúncia ao Ministério Público e exigi a presença da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), já que a promotora não queria chamar. Quando a Anvisa veio, comprovou que houve o surto e que, em consequência, 32 pacientes morreram pela pseudomonas aeruginosas, porque as medidas tomadas por mim não foram acatadas pelo diretor para proteger as pessoas. O Ministério Público, contudo, não tomou as providências para que os dirigentes fossem punidos. Punidos foram eu, os pacientes que morreram e os familiares que perderam os entes queridos”.
Diante do afastamento compulsório do Hospital Regional, Ronaldo Costa prestou um novo concurso, agora para os Correios e Telégrafos. “A empresa me acolheu de braços abertos. Atuei como coordenador regional do programa de controle médico de saúde ocupacional e, depois, nacional. Na época, a empresa tinha 118 mil empregados e tive a felicidade de coordenar esse programa da maior empregadora do Brasil. Fiz, depois, os concursos da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), que são meus atuais vínculos, como médico perito e do trabalho. Agora, a universidade concordou em me ceder para o Ministério da Saúde”.
A trajetória é recordada pela postura crítica e combativa em relação à saúde em Mato Grosso do Sul. “É uma saúde muito sofrida. A gestão sempre foi muito ruim, com os pacientes sempre muito sacrificados, os trabalhadores sempre com péssimas condições de trabalho. Por essas razões, sempre houve enfrentamentos no âmbito do SUS no Estado. Sempre fui muito crítico e procurei me organizar. Participei, inicialmente, do Sindicato dos Trabalhadores em Seguridade Social e, até antes de assumir a superintendência, era diretor do Sista (Sindicato dos Servidores Técnico-administrativos da UFMS)”.
Máfia do câncer sonegou atendimento a pacientes e tentou acabar com a carreira de Ronaldo
Estar associado e atuar nos sindicatos também foi uma das formas encontradas pelo médico de não ver repetida em outras famílias as aflições vividas por ele. “A questão mais contundente foi a do câncer. Vi a minha mãe, com câncer, ser mal atendida e de forma irregular. Ela foi atendida em lugares que não eram próprios e, depois disso, encontrei vários casos semelhantes no HU, onde trabalhava”, diz.
“O hospital estava com a radioterapia paralisada, com os servidores do serviço cedidos para outros lugares e os pacientes não tinham onde se tratar. Por isso, em 2007, fui à Polícia Federal e denunciei o que estava acontecendo na política de assistência aos pacientes com câncer em Mato Grosso do Sul. Essa denúncia originou a Operação Sangue Frio, responsável por investigar a máfia do câncer no Estado, um escândalo nacional”.
Enfrentar esquemas de desvio de recursos públicos pode ser comparado a um tratamento medicamentoso, há sempre efeitos colaterais quase nunca agradáveis. “Toda a situação de enfrentamento gera perseguição, dano. Entrei em uma condição muito estressante e precisei me afastar para me recuperar”, destaca.
“Não consegui, contudo, retornar, porque fui aposentado após vários afastamentos sucessivos e uma junta médica encomendada para me perseguir, dizia que eu não tinha condições de voltar ao trabalho, me aposentando compulsoriamente. Para retornar, precisei fazer um outro concurso e provar que estava apto. Então, fiz outro concurso para a UFMS, fui aprovado e nomeado. Só depois disso, o meu caso foi julgado e, assim, consegui voltar no vínculo antigo e assumi um novo. Meu porto seguro, hoje, é minha universidade”.
Candidatura a vereador mostrou que médico não é voz solitária na defesa do SUS
Se o trabalho de combater os desvios do SUS e o atendimento inadequado chamou atenção de uma ala política que o perseguiu, não foi diferente para outro grupo, que enxergou em Ronaldo Costa o nome ideal para levar as questões da saúde para o parlamento, a começar pela Câmara de Campo Grande.
“Em 2020, já tínhamos um acúmulo de propostas e projetos e o nosso grupo, muito abnegado, resolveu lançar a nossa candidatura. Me vejo como um instrumento. Sou consequência de todo o processo e a construção de pessoas organizadas com esse pensamento. Sou uma representação das pessoas que têm vontade de mudar, de transformar esse quadro da saúde, do meio ambiente, do trabalho digno, do direito ao lazer e da educação de qualidade. Fui candidato a vereador com esse monte de sonhos”.
Embora não tenha alcançado o número de votos necessários para ocupar uma das cadeiras da Câmara, Ronaldo Costa e o grupo de defesa da saúde e do meio ambiente dão seguimento ao trabalho.
“Esse mundo em que estamos está superado, ele não tem mais condições de oferecer qualidade de vida, porque está entrando em esgotamento. Precisamos ser mais solidários, humanos e integrativos para promover mudanças. Com base nesse pensamento humanitário, conseguimos formar um grande grupo que pensa de forma semelhante. Tenho minha família e pessoas com a mesma vontade de mudar”.