Um ano após a largada oficial para a implementação das novas diretrizes do ensino médio no Brasil, o projeto foi suspenso por 60 dias como consequência de uma enxurrada de críticas de especialistas em educação e do próprio governo federal. Na prática, alguns governos estaduais haviam aplicado mudanças previstas na Lei nº 13.415/2017, batizada de Novo Ensino Médio, mas o Ministério da Educação barrou o avanço, cuja universalização ganhou força em janeiro de 2022.
De acordo com Marcelo Correa Pires, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), vários movimentos em todo o País atuaram pela revogação do projeto, mas o atual governo decidiu pela suspensão de 60 dias para avaliação da medida, responsável pela alteração nas Leis de Diretrizes de Base da Educação.
A primeira mudança prevista é a ampliação da carga horária para cinco horas diárias face às atuais quatro, como explica a especialista em educação e integrante da direção da Fetems (Federação dos Trabalhadores da Educação de Mato Grosso do Sul), Sueli Veiga. “A lei estipula aumento progressivo da carga horária. No modelo anterior eram, no mínimo, 800 horas-aula por ano (total de 2,4 mil no ensino médio inteiro). No novo modelo, a carga deve chegar a 3 mil horas ao final dos três anos. Entretanto, a carga horária para a Formação Geral Básica (todas as disciplinas), foi reduzida de 800 para 600 horas anuais. E foram criadas 400 horas de itinerários formativos (que são um amontoado de disciplinas ou conteúdos fragmentados)”.
Mudança no Ensino Médio foi classificada como autoritária por educadores
Marcelo Correa Pires acentua que a reforma se inicia com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN n. 9.394/96) pela Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, editada pelo Governo de Michel Temer, e convertida, em fevereiro de 2017, na Lei n. 13.415/2017. “Talvez neste ponto, inicia-se a insatisfação da sociedade e a resistência de diversos movimentos pela educação no País. Não se pode mudar uma lei de forma autoritária e abrupta, portanto, configuram-se práticas ilegítimas e, até, antidemocráticas de promover mudanças em um campo complexo como o da educação e, sobretudo, o Ensino Médio por apresentar os índices da Educação Básica mais preocupantes historicamente”.
O pesquisador ressalta, ainda, ser preciso analisar o momento histórico que culminou com a mudança. “Quando eu afirmo isso, me pauto no contexto político em que foi fabricada a reforma do Ensino Médio, qual seja, a destituição de uma presidente legitimamente eleita pelo povo (Dilma Rousseff), afastada sem a efetiva comprovação de crimes de responsabilidade, deixando lugar para um presidente (Michel Temer) que, ao assumir, teve como uma das principais metas a publicação da Emenda à Constituição – PEC 241, a qual congelaria os gastos sociais por 20 anos, o que, só por aí, já seria um entrave gerado pelo próprio governo ansioso por reformar o ensino Médio com uma MP, inviabilizando a operacionalização que, inevitavelmente necessitaria, entre outras coisas, de maior investimento”, pontua.
“Por isso, como há seis anos não havia reajuste na merenda escolar nas escola públicas do País, em 2023, por intermédio de uma PEC (veja bem, não estava prevista no orçamento já aprovado) o governo federal, reajustou em 39% investindo um valor de R$ 5,5 bilhões no Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar)”, diz.
Proposta visa reduzir a evasão, mas projeto acentua abandono escolar
O modelo prevê o direcionamento pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) de disciplinas de todas as escolas do País. Ficaria a cargo do estudante o direcionamento da outra parte da formação. A oferta desse itinerário, contudo, depende da capacidade das redes, escolas e estados. Entre as justificativas para a elaboração do texto da reforma está a necessidade de tornar o Ensino Médio mais atrativo para o estudante e, assim, reduzir a evasão escolar.
Pesquisa Ipec para o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) apontou que 2 milhões de estudantes entre 11 e 19 anos abandonaram as salas de aula. Entre os principais motivos para a evasão está a dificuldade em acompanhar as explicações dos professores.
Na avaliação de Sueli Veiga, a lei aprovada em 2017, não é suficiente para conter o problema da evasão escolar, ao contrário, pode ser um estímulo ao abandono da sala de aula. “O aumento da carga horária não é atrativo para alunos mais pobres que precisam trabalhar. Fica mais difícil conciliar a escola com um emprego e aumenta o risco de evasão (se um jovem precisar daquele dinheiro, vai abandonar as aulas e focar no trabalho)”.
A professora também também pontua problemas na arquitetura do projeto, em especial quando a lupa é apontada para a diferença entre as escolas públicas e privadas.
“As disciplinas clássicas têm menos prioridade na grade com a entrada das novas ofertas. Em alguns casos, estudantes relatam ter ficado com apenas duas aulas na semana de português e matemática. Alunos de escolas públicas em cidades menores, com menos recursos, vão acabar tendo um cardápio de itinerários formativos mais enxuto. Eles podem ser prejudicados em comparação com alunos de escolas privadas ou de municípios maiores. Além disso, estudantes mais pobres podem ser desestimulados a seguir para o ensino superior, porque, no novo formato do ensino médio, há disciplinas optativas que são profissionalizantes e que facilitam a entrada precoce do jovem no mercado de trabalho”.
Em audiência pública realizada na ALMS (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul) no dia 11 de abril, educadores e estudantes revelaram preocupação com os efeitos práticos da aplicação da proposta.
“Um projeto que veio de cima, uma reforma tão profunda que não teve a participação dos principais envolvidos, que são os professores e os estudantes. Nós tivemos um empobrecimento no Ensino Médio. O que tentaram fazer foi a profissionalização dos nossos jovens para que sejam uma mão de obra barata. É uma reforma que interessa apenas aos empresários, que querem o jovem só para apertar o botão da máquina. E o que nós queremos? Queremos um Ensino Médio que ofereça uma formação sólida aos estudantes”, afirmou no encontro o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS).
Escolas, redes e estados têm estruturas diferentes, aprofundando o abismo das diferenças educacionais
Preocupação semelhante foi compartilhada ainda em janeiro de 2021, pelo presidente do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), Vitor Angelo, do Espírito Santo. À Agência Brasil, o dirigente enfatizou que o projeto poderia representar desigualdade entre as regiões e, por isso, a necessidade de adequação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Já a educadora parental e professora Nádia Fernandes, analisa que “os alunos não estão preparados para ou aptos a este novo modelo de ensino. Isto teria que ser aplicado, inicialmente no fundamental I – uma construção mais sólida para que assim o aluno, no Ensino Médio, tivesse a base necessária para seu desenvolvimento”.
Da maneira como foi proposto, concordam os educadores, o modelo aprofunda as desigualdades educacionais. Nádia Fernandes lembra que mesmo os professores não foram preparados de maneira adequada. “Não temos um suporte ideal para esta mudanças ou propostas de ensino, o professor no Brasil não tem o suporte necessário para obter um desenvolvimento profissional mais adequado, imagine uma formação para futuras mudanças?”.
Hoje, conforme dados do Censo Escolar de 2022, das 84,2% das 7,9 milhões de matrículas registradas no ensino médio correspondem a estabelecimentos públicos.Face aos dados, é preciso sublinhar a falta de infraestrutura para a gestão do modelo. “Há escolas públicas sem infraestrutura para manter o novo formato. No novo ensino médio, cada colégio deve escolher, no ‘cardápio’ de itinerários formativos elaborado pela sua rede estadual, no mínimo duas opções para oferecer aos alunos (matemática e linguagens, por exemplo). Com isso, em vez de uma turma grande ter a mesma aula às 8 horas, como era antes, serão dois grupos menores (um que escolheu matemática, outro que preferiu linguagens). Isso exige que a escola tenha duas salas de aula disponíveis no horário”, alerta Sueli Veiga.
Caso não houvesse a decisão do Ministério da Educação de suspender a medida, a previsão era de implementação total da reforma até 2024. A mudança começou em 2022, a partir do 1º ano, etapa que seria consolidada em 2023, com a inclusão do 2º ano. Por último, ficaria a adequação do 3º ano. Sueli Veiga pontua que a implementação não foi suspensa, e que o projeto do Novo Ensino Médio continua a ser implementado em todas as redes de ensino. “A suspensão por 60 dias do cronograma de implantação, na verdade, só vai atingir algumas poucas escolas e redes que ainda não implantaram. E por causa do Enem”.
Redes privadas miram lucro com ampliação da carga horária do Ensino Médio na rede pública
Crítico à suspensão, o Consed emitiu nota em fevereiro, onde defende o trabalho realizado até então para a implementação da reforma. A nota da entidade destaca a colaboração das equipes das escolas, os sindicatos e especialistas em educação para a construção do projeto. Enfático, o conselho classificou como insensato o descarte do trabalho de elaboração da nova proposta e, ainda, os recursos aplicados. Até o início de 2022, o governo federal havia repassado aos estados R$ 2,5 bilhões para a consolidação da reforma.
Por razões diferentes das reivindicadas pelo Consed, a Andes-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) aderiu às marchas estudantis para a revogação das mudanças impostas ao Ensino Médio. Para a entidade, a reforma compromete e representa retrocesso para a educação por alterar as disciplinas que promovem o senso crítico e a reflexão. Outro problema seria a condução de uma mudança com atrelamento à iniciativa privada, tomando como exemplo o Sistema S, já de prontidão para oferecer o complemento do aumento de carga horária previsto na lei. “O novo Ensino Médio abriu possibilidade de que houvesse a realização de acordos e parcerias público-privado na contratação de modelos e propostas pedagógicas e de gestão, bem como de material pedagógica para a formação de professores, como foi o caso de serviços oferecidos pelo ICE (Instituto de Corresponsabilidade pela Educação), Instituto Natura, Instituto Sonho Grande, entre outros, com ampla parcerias com as Secretarias de Estado de Educação por todo o País”, revela Marcelo Corrêa Pires.