A anulação da sentença, que condenou o engenheiro João Afif Jorge por improbidade administrativa a devolver R$ 5,494 milhões aos cofres públicos, abriu uma guerra entre o desembargador Sérgio Fernandes Martins, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, e o juiz David de Oliveira Gomes Filho, da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.
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Em despacho de 16 páginas, publicado na segunda-feira (14), o magistrado reagiu aos ataques do relator na 1ª Câmara Cível, que o acusou de cerceamento da defesa, de atuar em “simbiose” com o Ministério Público Estadual e de “esconder” decisões com a criação de categoria “de segredo de Justiça especial”.
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O primeiro ataque do magistrado foi sobre o acórdão. Inicialmente, Gomes Filho deixa claro que o juiz é obrigado a cumprir o acórdão de segunda instância. No entanto, ele frisa que o relatório de Sérgio Martins é muito difícil ou impossível de ser cumprido em razão da “confusão de dados utilizados”. Como tem três dúvidas e não sabe como fazer para cumprir duas determinações, ele marcou reunião, no dia 8 do próximo mês, com defesa e dois promotores de Justiça, o autor da ação, Adriano Lobo Viana de Resende, e do responsável pelo processo citado pelo desembargador, Fábio Ianni Goldfinger (que substituiu Marcos Alex Vera de Oliveira na 30ª Promotoria do Patrimônio Público), para saber como proceder.
“Registro apenas que não é a intenção deste juiz rediscutir o acerto da decisão, mas o de refutar a agressão sofrida e esclarecer a dificuldade para atender parte dos comandos dados pelo colegiado, de modo que, em conjunto com as partes, se consiga, juntos, encontrar um modo de cumpri-lo”, frisou o magistrado.
Ele acusou Martins de ter proferido um “voto insultuoso” e fundado “numa percepção equivocada da realidade”. As medidas cautelares citadas pelo desembargador fazem parte de outro processo, inclusive uma ação em que Afif não é nem réu.
“Fugindo da boa técnica e utilizando-se de ataques pessoais gratuitos, o voto condutor do acórdão documentou neste processo insinuações ofensivas à honra deste magistrado que não podem simplesmente ficar sem um contraponto, pois passariam por verdadeiras, o que definitivamente não o são! Não há como apagar o que foi escrito e, portanto, é preciso ficar assentado o que segue, tal qual aconteceu no acórdão, para que a verdade prevaleça, mesmo que manifestação desta natureza seja incomum em peças jurídicas e gere enorme constrangimento a este juiz”, reagiu David de Oliveira Gomes Filho.
A reação do magistrado, que também tem sido contundente nos julgamentos das ações envolvendo a Operação Lama Asfáltica, foi diferente do juiz Bruno Cezar da Cunha Teixeira, da 3ª Vara Federal de Campo Grande. Por suspeição, ele foi afastado da Operação Lama Asfáltica e teve as decisões anuladas sobre Edson Giroto pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Segredo do segredo
Martins acusou o juiz da 2ª Vara de Direitos Difusos de criar nova categoria no Judiciário, que seria inacessível até o desembargador responsável por analisar o caso. “Nem mesmo este relator conseguiu acesso, por mínimo que seja, à medida cautelar em questão, o que demonstra que o referido feito tramita em uma espécie de ‘segredo de justiça especial’, no qual o próprio julgador de segunda instância, incumbido de decidir a apelação, não tem ‘autorização’ para consultar os auto”, pontuou o desembargador.
A reação de Gomes Filho foi contundente e classificou as insinuações como falsas. “Pior, sugeriu que este juízo impôs a duas medidas cautelares, um tipo de ‘segredo de justiça especial’ do qual sequer ele relator consegue visualizar determinados processos e chegou a dizer que a medida cautelar pareceu ter sido ‘escondida’ pelo magistrado. Estas insinuações são falsas, atécnicas e extremamente ofensivas a quem, em 22 anos de magistratura, sempre primou pela ética, pelo bem servir ao interesse público, pelo respeito às regras de julgamento e pela compostura”, frisou.
Em seguida, o magistrado deu uma aula sobre os processos mantidos em sigilo. “O segredo de justiça, diga-se, é recurso legal e comum em todas as áreas do direito e em todas as esferas do Poder, especialmente em medidas cautelares tiradas de investigações em que o sigilo é necessário para o bom termo do que ali se pretende”, pontuou.
Em seguida, ele arrematou que as medidas citadas por Martins não passaram pelo seu gabinete. “A medida cautelar n. 0837544-54.2015.8.12.0001, mencionada no acórdão não tramitou na 2ª Vara de Direitos e Coletivos, tanto que este magistrado não tem acesso à ela. E, portanto, é impossível a este juízo liberar acesso a esta referida medida cautelar, como determinado no acórdão, da mesma forma que era impossível a este magistrado ter ciência do conteúdo dela quando prolatou a sentença recorrida”, destacou o juiz.
Simbiose
O desembargador acusou Gomes Filho de atuar com o objetivo de condenar os réus. “Muitas vezes, e não se pode desconhecer essa realidade, ocorre uma simbiose na atuação do magistrado com o órgão acusador, na busca da verdade real, e sempre, naturalmente, buscando a punição de crimes complexos que são perpetrados aos borbotões e acabam impunes nos mais diversos recantos do país, porém, cediço que ao julgador cabe guardar certa distância desse tipo de agir, eis que o dever de produção das provas é do órgão acusador, prerrogativa que não é e nem pode ser estendida ao julgador, vez que este, por óbvio, é mero detentor da análise da prova e não aquele que a produz”, acusou Sérgio Martins.
“Que fique claro, pois, que o magistrado que assina a presente nunca se permitiu envolver em qualquer tipo de ‘simbiose’ (seja lá o que isto venha a significar no contexto usado pelo relator) com o órgão acusador ou com a defesa de qualquer réu”, defendeu-se.
“Aliás, esta alegada ‘simbiose’ de qualquer magistrado e em qualquer grau jurisdicional, seja com a acusação, seja com a defesa, sempre foi vista pelo juiz David de Oliveira Gomes Filho com elevada repulsa, pois ela afeta o que há de mais sagrado ao julgador vocacionado, que é a imparcialidade”, destacou o magistrado, deixando claro que a preocupação com a carreira de mais de duas décadas no judiciário sul-mato-grossense.
“Muito o surpreendeu ver insinuações como estas oficializadas no corpo de um voto e de modo absolutamente gratuito, sem sentido e sem amparo nos elementos reunidos no processo. Espera-se que tal simbiose nunca aconteça no Poder Judiciário Sul-mato-grossense seja em primeiro, seja em segundo grau jurisdicional, pois tal proceder avilta a missão de julgar!”!, concluiu, deixando claro que espera a imparcialidade também do TJMS.
Cerceamento surreal
A 1ª Câmara Cível anulou a condenação de Afif com base no argumento de cerceamento da defesa porque o réu não teve acesso a medidas cautelares que supostamente embasaram a condenação. “Resta claro o erro do relator ao considerar que o conteúdo da mencionada medida cautelar influenciou no julgamento em primeira instância, pois, ao contrário do alegado, este magistrado nunca viu seu conteúdo e não tem condições de vê-lo ainda hoje, que dirá de se influenciar ao decidir a ação de improbidade”, rebateu o titular da 2ª Vara de Direitos Difusos.
“Causa perplexidade, aliás, a anulação de uma sentença, por cerceamento de defesa, porque não foi dado ciência do conteúdo de outro processo para o requerido, pois, repito, ‘o que não está nos autos não está no mundo!’ e isto é elementar em Direito!”, argumentou, deixando claro estar estupefato com o acórdão.
“Piora a estupefação quando consta do acórdão que o mencionado conteúdo são dados bancários e fiscais que o próprio requerido já possui, pois são os seus dados bancários e fiscais”, ressaltou.
“A medida cautelar não embasou a presente ação de improbidade e muito menos a sentença. A ação de improbidade administrativa foi ajuizada antes da medida cautelar e nenhum elemento desta medida cautelar foi juntado ao processo de improbidade antes da sentença”, pontuou o juiz.
Em seguida, ele tenta ser didático para justificar o questionamento. “Para se ter uma ideia da confusão criada aqui, o acórdão faz menção à ação penal n. 0000900-14.2016.8.12.0001 para onde foi enviado uma cópia do relatório contábil produzido na medida cautelar n. 0900328-62.2018.8.12.0001. O requerido João Afif Jorge sequer é réu na mencionada ação penal, situação esta que demonstra que o alvo da mencionada investigação abrangia pessoas diversas do requerido, muito embora, ele também fosse um dos investigados”, explicou.
“Com efeito, fica a dúvida a este magistrado se o acórdão pretende, realmente, quebrar o sigilo bancário e fiscal de estranhos a este processo e disponibiliza-los nestes autos ou se os dados seriam apenas do requerido João Afif Jorge”, questiona.
Martins determinou a anulação da sentença que condenou João Afif Jorge a devolver R$ 5,494 milhões aos cofres do Estado. Ele não provou ter renda para adquirir duas fazendas em parceria com Edson Giroto e Wilson Roberto Mariano de Oliveira. Com renda anual entre R$ 85,5 mil e R$ 147,5 mil, ele investiu R$ 1,894 milhão na compra das propriedades, de 1.062 e 4.581 hectares. Também ficaria inelegível por oito anos e perderia eventual função pública.
Afif trabalhou na gestão de André Puccinelli (MDB), que indicou Sérgio Martins para o cargo de desembargador do Tribunal de Justiça na vaga destinada a OAB/MS. Martins foi procurador do município na gestão do emedebista na Prefeitura de Campo Grande.
Ao anular a sentença, ele determinou que o processo volte a fase inicial.