Em artigo especial para O Jacaré, o jornalista e filósofo Mario Doraci fala da revolta com o atual momento da política brasileira, em que se nega a gravidade da pandemia e mantém-se a política de achatamento dos salários e encarecimento dos alimentos, combustíveis e produtos em geral.
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O homem revoltado
(*) Mario Doraci, de Paris, França
No ensaio contra o negacionismo, no mito de Sísifo, Albert Camus se posiciona contra o absurdo do suicídio. A existência vale mais que a destruição e a negação da vida, ele é positivo contra o que é negativo. O fundador de Corinto, Sísifo, por ter revelado segredos da imortalidade aos mortais, foi condenado pelo deus dos infernos, Hades, a rolar uma pedra redonda para deixá-la no topo de uma montanha, de onde ela sempre rola morro abaixo.
A ideia do absurdo e do suicídio se instala porque a punição é absurda. A metáfora de Sísifo no entendimento de Camus se explica que apesar da destinação cruel, não há paixão sem luta. Camus resgata, contudo, esta passagem do absurdo para enfrentar Stalin e a ideologia revolucionária que mandou matar de fome e cansaço os opositores no Gulag.
As revoluções que perdem de vista os princípios da mudança e mergulham na violência e perseguição, acabam por entrar na esfera do hilismo, do nada. Neste estudo, Camus esclarece a dialética do mestre e do escravo. É também a partir deste livro que Camus foi acusado de convertido, de cristão, por Sartre, embora o autor admitisse, como Nietzsche, que somente os idiotas não mudam de opinião. Camus mudou de opinião e isso causou a ira de Sartre que, embaraçado por sua questão ideológica, deu início ao quiproquó da destruição da amizade no círculo intelectual dos existencialistas.
Enfim, Camus não aceitou de bom grado as atrocidades cometidas por Stalin e escreveu o livro “O Homem Revoltado” resgatando figuras da mitologia grega. O homem revoltado é um seguimento ao seu trabalho sobre a negação e o caráter absurdo da existência. Nos dias de hoje, as pessoas não podem fingir ser estrangeiras, indiferentes à atual situação que assola o Brasil, porque seria admitir o reino da peste governada pela peste.
A inimizade implantada por Sartre ganhou vida no Brasil com as promessas pomposas, cheia de vento como se fosse o pastel de feira. Tudo o que era fácil, acessível e mais barato, triplicou, quadruplicou ou quintuplicou sem que a voz popular reclamasse. Hoje vemos os proletários, os trabalhadores em geral, de cabeça baixa às ordens de um xucro com faixa de presidente. A mensagem descristianizada de sentido, sem razão, pela família (dele) entra pela sala e chora na cozinha de panelas e dispensas vazias.
Camus rompeu com as ideias do comunismo e enfrentou quase sozinho a avalanche de críticos subordinados ao princípio da mudança pela violência. Pois então, essa dita mudança no Brasil não teve hora, nem dia, porque o barão que ocupa o Planalto não tem ideias, é agressivo por natureza, discriminador. Ironia do destino ou não, o povo viu nele o reflexo de si mesmo. Teve progresso durante um período espetacular na economia e no bem-estar, mas o avanço foi mal visto pela classe brega que se diz de elite, porque o empregado cursava faculdade, andava de avião, comia churrasco, trocava de carro e sorria com todos os dentes. Os valores, contudo mudaram, e não ter ideias, nem projetos, muito menos pragmatismo, apenas sofismos enviados em massa por redes sociais, como se o mito da caverna de Platão revivesse na pele dos evangélicos, de ministros desqualificados, aproveitadores que negam a realidade dos fatos.
A revolta é algo positivo para sair do jugo da exploração, da mentira, da desigualdade e da injustiça. Revoltar-se é indignar-se com o statu quo, é exigir mudança. Não é preciso ser militante político ou pertencer a um movimento social para expulsar alguém que faz mal ao seu trabalho, atrapalha e impede que se faça melhor. Na dialética entre o bem e o mal, as pessoas querem escolher o bem, mas às vezes se enganam por uma série de fatores. O falso maniqueísta dormia em sua cadeira pública há exatos vinte e oito anos como um ovo de serpente.
De repente, a sociedade entrou em ebulição, o ovo abriu e a sucuri entrou em cena. O povo elegeu a serpente que estrangula seus eleitores ao negar, a atacar com suas dentadas e depois a retornar para sua toca, o Planalto. É este povo que tinha tudo ao preço mínimo e achou que estava sendo ludibriado, agora não tem direitos trabalhistas, tudo é terceirizado, os produtos comidos pela inflação, aumentos abusivos e presentes salariais a quem não merece, juízes e militares.
O Brasil hoje vive um despotismo absoluto mesclado de mensagens e gestos religiosos com um povo (nem todos) adormecido, alienado, anestesiado, contente e feliz por todos os direitos que lhe foram tirados. As lições do príncipe, de Maquiavel, deixam claro que fingir gera efeito positivo. Finge-se de vítima de facada, de solução, de remédio para a doença, de cristão, tal como quis o tal Hitler para exterminar a petezada de judeus.
É hora de revoltar-se, sair para as ruas e exigir mudança. Os becos não falam por si, é necessário agir, abandonar o sofá, desligar a televisão. Não agir na atual situação, é o mesmo que aceitar a punição do deus dos infernos ao Sísifo e recomeçar todo santo dia a mover a pedra que retorna sempre ao ponto de partida. É preciso tirar a corrente dos pés para sair da caverna da fome e expulsar o genocida. Quem não age em favor do oprimido, aprova as arbitrariedades do opressor.
(*) Mário Doraci é jornalista pela UFMS, mestre em Sociologia da Comunicação, filósofo e doutor em Ciências Políticas ambos por Dauphine, Paris.