Em artigo para O Jacaré, a advogada Giselle Marques fala sobre a polêmica causada pelos direitos à saúde e o de ir e vir, ambos previstos na Constituição, em decorrência da pandemia da covid-19. Qual o direito deve prevalecer? Ela também comenta as ações adotadas para combater à doença na Capital.
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Por outro lado, Giselle critica a falta de critério para manter parques fechados, mas permitir a reabertura de shoppings e centros comerciais. Ela ainda questiona que a população mundial enfrenta uma situação jamais imaginada pela civilização humana. “Minha filha de 20 anos, perplexa ante ao confinamento forçado, reclamou: ‘mãe, me desculpe, mas a minha geração nunca passou por isso’. Respondi categórica; ‘a minha também não, filha’”, relatou.
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Constitucionalidade da limitação das liberdades individuais em face da pandemia Covid-19
(*) Giselle Marques
A pandemia provocada pela COVID-19 gerou situações jamais imaginadas pela civilização humana. Minha filha de 20 anos, perplexa ante ao confinamento forçado, reclamou: “mãe, me desculpe, mas a minha geração nunca passou por isso”. Respondi categórica; “a minha também não, filha”. Chegamos a uma encruzilhada na nossa caminhada sobre o planeta Terra, e estamos pagando o preço das nossas escolhas enquanto indivíduos e enquanto sociedade.
O modo de produção capitalista revelou-se um verdadeiro “modelo de destruição” das riquezas naturais: velozmente vem destruindo florestas, poluindo rios e globalizando a miséria. Segundo dados da OXFAM, de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada.
No Brasil, em 2018, enquanto 1% da população possuía rendimento médio mensal de R$ 27.744,00, mais da metade dos brasileiros auferia renda de apenas R$ 820,00, menos que o salário mínimo em vigor naquele ano. De acordo com os dados do IBGE, o índice Gini, principal termômetro da desigualdade social, que vinha caindo até 2015, voltou a subir no país, alcançando 0,545, o maior patamar da série histórica do instituto, iniciada em 2012. Isto significa que embora a economia cresça, esse crescimento não se reflete na melhoria da qualidade de vida da população.
Nesse contexto, a enfermidade provocada pela COVID-19 surge como “doença espalhada pelos ricos”, que cruzam oceanos em voos internacionais disseminando-a rapidamente. O poder público nos municípios passa a adotar medidas restritivas das liberdades individuais, como limitação do direito de ir e vir e a obrigatoriedade do uso de máscaras.
Os meios de comunicação divulgam inúmeras situações nas quais pessoas se recusam a obedecer tais determinações impostas pelas autoridades municipais e estaduais, resultando na imposição de multa administrativa e, em casos extremos, até mesmo na prisão dos infratores, que ao serem detidos gritam: “é meu direito estar aqui, está na Constituição”.
A Constituição em vigor no Brasil, com efeito, estabeleceu um catálogo de direitos fundamentais que está na base da organização das sociedades democráticas modernas. O art. 5º, XV prevê: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Seria, portanto, inconstitucional a limitação de tal direito? Ou será que a pandemia não seria “tempo de paz”?
Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, enquanto a epidemia corresponde à propagação de uma nova doença em um grande número de indivíduos, sem imunização adequada para tal, em uma região específica, a pandemia diz respeito a uma doença que se alastrou em escala mundial, em mais de dois continentes.
Estudos da Imperial College London demonstram que as restrições às liberdades de locomoção são adequadas ante a inexistência de vacina que imunize os seres humanos. O embasamento para a atuação do estado na limitação temporária dos direitos individuais, nesse contexto, vem da própria Constituição Federal, cujo artigo 196 proclama: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Assim, a atuação do estado não é apenas desejável, mas obrigatória. No âmbito do direito constitucional, há juristas que apontam para a solução no caso de conflito entre direitos fundamentais, como é o caso de Robert Alexy e Ronald Dworkin: um direito fundamental nunca revoga o outro. Mas é possível que, no caso concreto, um desses direitos (no caso, o direito de ir e vir) se afaste para que o outro (o direito à saúde a até mesmo à vida) possa incidir com maior amplitude.
Os poderes públicos, portanto, estão legitimados a adotarem medidas restritivas aos direitos individuais, os historicamente chamados “direitos de liberdade”, a fim de propiciar que o direito coletivo à saúde seja efetivado. A conjuntura exige isso, e a própria Constituição no artigo 196 também. Agem bem os Municípios, portanto, quando determinam medidas de isolamento social, restrições ao direito de locomoção e até mesmo o uso de máscaras. Até porque são os municípios que detêm o controle quanto ao número de leitos e estrutura hospitalar disponíveis para atenderem a população, em especial os usuários do Sistema Único de Saúde, que são a maioria da sociedade.
Mato Grosso do Sul tornou-se uma referência devido a pouca incidência da enfermidade provocada pela COVID-19. Há que se lembrar, no entanto, que o Município de Campo Grande, que é o mais populoso, concentrando quase um terço do número total de habitantes do estado, já no mês de março adotou medidas severas como é o caso do “toque de recolher” e o fechamento de praças e shoppings, e isso garantiu esse quadro até então positivo.
Agora a administração municipal parece ter perdido o rumo, talvez cedendo às pressões de determinados setores econômicos. Aliás, ainda não consegui entender qual a lógica de abrir shopping e manter os parques fechados. O resultado não poderia ser outro: em apenas 11 dias, o número de casos da doença dobrou em MS, de 2.132, registrado no dia 6 deste mês, para 4.666 hoje.
Devem, portanto, os municípios retomar sua obrigação constitucional de instituir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença. E a nós, cidadãos, cabe o dever de colaborar com tais iniciativas, fazendo a nossa parte: ficando em casa, usando luvas e máscaras para ir ao mercado, e compreendendo que ao meu direito individual de ir e vir corresponde o meu dever de contribuir para a saúde de tod@s.
(*) Giselle Marques é advogada, doutora em direito e professora universitária
Reprodução autorizada pela autora, desde que citada a fonte.