A advogada Giselle Marques, em artigo especial para O Jacaré, fala da dor de mãe ao ver a filha ser vítima do racismo em uma escola de classe alta na Capital. Para destacar que vidas negras importam, ela furou isolamento, mesmo sendo do grupo do risco, e foi participar da manifestação organizada a partir das redes sociais na Praça do Rádio. Todos usaram máscaras e mantiveram distância, seguindo as orientações para enfrentar a pandemia do coronavírus.
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“Não creio que ninguém nasce racista. Admitir isso seria admitir um “pecado natural” que não se cura com o batismo, já que muitos filhos de cristãos praticaram atos de racismo contra minha filha”, alerta.
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VIDAS NEGRAS IMPORTAM
Giselle Marques (*)
“Meu pai era branco. O pai dele, Joaquim, mulato. Diziam que era casado com uma loira de olhos verdes, minha avó Matilda, a qual não conheci, pois se separaram e ela voltou para a Bolívia, onde nascera, antes mesmo de meu pai completar cinco anos. Vovô passou a viver com uma outra mulher, negra, e tiveram vários filhos.
Quando criança eu amava ir à casa deles, lá em Ladário. Admirava a pele preta, lisa, os cabelos enrolados e grossos e, acima de tudo, achava que quando sorriam, o mundo todo sorria com eles. O contraste entre a pele negra e os dentes brancos para mim sempre significou uma das maravilhas da obra da criação divina. Íamos pouco lá, mas esse pouco ficou gravado na minha memória de forma indelével.
Nunca entendi gente que não gosta de pessoas negras. Sempre os admirei, pela beleza, inteligência e musicalidade. Há pouco ouvi no rádio: “a raça negra no Brasil é a maioria”. A frase me doeu na alma. Para mim no Brasil e no mundo somos todos raça humana. Mas, ao longo da vida, fui percebendo que não é bem assim. Que não somos todos vistos como iguais. Que não somos tratados como iguais. Que não temos os mesmos acessos às condições mais básicas de vida: saúde, educação, emprego. Não, não somos iguais.
A vida é mais fácil para mim que tenho pele clara, mesmo sendo neta de mulato, do que para meu irmão que nasceu mais moreno. Ele sempre foi discriminado, desde a nossa infância, e pagou um alto preço por isso. Uma vez, na porta da igreja, um amigo nos viu conversando, e parou o carro para me defender “daquele cara que estava me importunando”. Quando eu disse que era meu irmão ele ficou muito sem graça e se desculpou.
Como mãe de duas lindas meninas de pele clara, eu cheguei a me esquecer de tais coisas. Mas aí nasceu a caçula, quando eu estava já no entardecer da vida. E a negritude voltou para dentro da minha casa. Desta vez, gerada pelo meu útero. Nasceu um lindo bebê de pele morena e cabelos encaracolados. Criança muito amada e esperada.
Mas, quando foi para a escola, a barra pesou. Ficou claro que o motivo do bullying não era outro senão o racismo. As crianças que frequentam as escolas de classe média alta em Campo Grande aprendem o racismo sabe-se lá aonde. Não creio que ninguém nasce racista. Admitir isso seria admitir um “pecado natural” que não se cura com o batismo, já que muitos filhos de cristãos praticaram atos de racismo contra minha filha.
Venho sofrendo com ela, que há poucos dias chorava baixinho no quarto, e quando entrei ela falou que tem muito mais probabilidade de morrer do que eu: entre 2012 e 2017, foram registradas 255 mil mortes de negros por assassinato; em proporção, negros têm 2,7 mais chances de ser vítima do que brancos. Em 2017, a taxa de violência letal entre jovens pretos ou pardos de 15 a 29 anos foi de 98,5%; entre jovens brancos o número cai para 34%.
A polícia, que devia protegê-los, é um ativo patrocinador desses assassinatos. É assim no Brasil, é assim nos Estados Unidos. É assim no mundo todo. Pessoas são subjugadas e mortas devido a sua aparência. Triste. Inaceitável. Por isso, mesmo sendo grupo de risco, ontem rompi o isolamento e fui para a Praça do Rádio em Campo Grande. Comprei bambolês para mim, minhas filhas e para as amigas delas que pediram para ir conosco. Amarramos os bambolês aos nossos corpos com barbantes, colocamos luvas e máscaras. Não abraçamos nem beijamos nossos amigos que lá apareceram.
Foi preciso. Necessário. Vidas negras importam. Quando vi policiais fortemente armados, quis acreditar que estavam lá para nos proteger do grupo que, de verde e amarelo, formado exclusivamente por homens jovens, brancos, fortes (“bombados”) tocavam o hino nacional no Obelisco da Afonso Pena com a José Antônio.
Quando ouvi o barulho do helicóptero, e o vi sobrevoando nossa manifestação, me lembrei quando fui às ruas ainda adolescente lutar contra a ditadura militar. Lembro de descer a Rua 13 de Maio com vários jovens, só com um trocado no bolso, as portas do comércio fechando e os helicópteros sobrevoando nossas cabeças, com armas apontadas para nós. Minha mãe ficava em casa apavorada, acendendo velas para Nossa Senhora Aparecida me proteger. Foi difícil. Mas eu tinha mais medo de ser conivente com a ditadura, com a opressão dos trabalhadores, do que de ser presa e morta.
Fizemos tanto, e eu andava assim “jururu” de ver que envelhecemos sem conseguir transmitir à juventude o valor da democracia. Mas ontem me enchi de esperança. O protesto foi organizado pela moçada. Inicialmente, pelas redes sociais. Depois, excluíram o evento das redes, por questões de segurança. Mas mesmo assim lotou. E foi lindo de se ver. Não havia nem aparelho de som. Só um frágil megafone, como era conosco nos anos 80.
O ato foi muito bem organizado. Todos de máscaras. As pessoas mantiveram distância uma das outras. Os cartazes feitos em casa, à mão. Foi lindo demais estar lá. Parabéns à juventude. Parabéns aqueles que, como eu, não passaram pela história do Brasil em branco.
Fui embora emocionada e derramei algumas lágrimas contando a nossa luta para as minhas filhas quando uma das amigas delas me consolou: “tia, fica tranquila”… “a sua geração derrubou a ditadura, mas a nossa vai derrubar o fascismo”. Que assim seja. Amém.”
(*) Giselle Marques, advogada
Reprodução autorizada, desde que citada a fonte.