Mato Grosso do Sul ignora o tempo ainda hábil para evitar a disseminação do SARS-Cov-2, o coronavírus causador da covid-19, ao deixar de instituir um plano emergencial com previsão de longo prazo para incentivo à indústria, manutenção de empregos e proteção aos trabalhadores da saúde. Vamos começar pelo último ponto. Ainda que desinfetar as mãos seja protocolo mínimo de segurança sanitária, como preconiza, a Organização Mundial de Saúde (OMS), 3.215 denúncias reportadas à Associação Médica Brasileira (AMB) até a manhã do dia 27 de abril demonstram o quão distante este ato está dos profissionais de saúde brasileiros. Do universo de queixas levadas à entidade, 49 correspondem às condições oferecidas em hospitais públicos, particulares, clínicas e postos de saúde operantes em cinco municípios sul-mato-grossenses.
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Na prática, as queixas traduzem que os profissionais de saúde de Campo Grande, Bandeirantes, Dourados, Naviraí e Rio Negro entram em campo totalmente desprotegidos. Não têm máscara tipo N95 ou PFF2, nem mesmo óculos ou face shield, luvas, gorros e capote impermeável.
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Impressiona ainda que 59,2% dos denunciantes estejam preocupados por não conseguirem ao menos limpar as mãos de maneira adequada, porque falta álcool em gel nos estabelecimentos de saúde. A carência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é, contudo, algo democrático em tempos de covid-19.
É fato que a pandemia desafiou o sistema de concentração da produção para facilitar as compras em escala a partir da China e a oferta de EPIs não está equacionada para a maioria dos países. De frente com a doença, há todo tipo de reação de profissionais de saúde. A última foi de médicos alemães que fizeram um ensaio fotográfico sem roupa como forma de demonstrar pela nudez o quanto se sentem vulneráveis diante do coronavírus.
O protesto não é bem humorado, mesmo os alemães estão implorando pelo fornecimento de EPIs e temem destino semelhante de 108 colegas ingleses e outros 151 italianos mortos após contaminação por coronavírus quando atuavam contra a covid-19.
No Brasil, a quantidade de denúncias levadas a entidades de classe evidencia o temor dos profissionais de saúde diante da garantia de trabalho e da própria segurança, mas também é uma oportunidade de refletir sobre a disseminação do coronavírus por quem está em contato direto e inevitável com doentes. Afinal, o que sente alguém obrigado a entregar seja um familiar ou um amigo aos cuidados de um profissional sem o devido paramento na briga contra um agente patológico de elevada transmissão e rápida ação? Certamente não é tranquilidade ou não deveria ser. Entre os dias 23 e 27 de abril, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) reportou seis mortes de médicos em decorrência das complicações causadas pela covid-19 e o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) denunciou a existência de 4.602 profissionais afastados após contaminação pelo SARS-Cov-2.
A fatalidade europeia e, agora, brasileira deveria ser impulso para preservar a segurança dos profissionais em Mato Grosso do Sul e não pode ser encarada como notícia distante. Na velha e certa máxima de aprender com o outro, o Estado está ignorando os sinais.
Uma análise rápida às compras do governo deixa saltar uma série de questionamentos e aqui vamos tratar de três. Primeiro: para todos os 77 municípios foram distribuídos 11.770 litros de álcool em gel – dados discriminados no portal da transparência. Oito queixas sobre a falta do produto foram enviadas por profissionais do Hospital Regional Rosa Pedrossian, a unidade referência para o tratamento da covid-19 em Campo Grande. Em contraste com as denúncias levadas à AMB, o produto é insuficiente ou é mal distribuído?
Segundo: qual será a maneira de gerir o uso de máscaras por 48 municípios periféricos que receberam a oferta de 50 unidades cada? O suprimento é suficiente para quatro plantões de 12 horas, ao levar em conta a substituição necessária a cada duas horas do equipamento como preconiza a OMS.
Terceiro: A SES direciona a maior parte dos EPIs para o Hospital Regional, mas conta que não haverá contaminações gerenciadas nas demais unidades. Não há plano de prevenção à contaminação dos profissionais dos demais hospitais?
Há, certamente, uma infinidade de justificativas estatísticas para a distribuição de equipamentos em análise ao percurso evolutivo da distribuição do coronavírus em Mato Grosso do Sul. Não há como perceber, contudo, no obtuso planejamento, a prevenção em um quadro de privilégio em relação demais aos estados brasileiros, com o sistema de saúde estrangulados pela pandemia.
Está claro pelo cenário mundial que a oferta unilateral de EPIs ainda vai gerar disputas e restrições de acesso. Por isso, é urgente a criação de programas de produção local de EPIs como forma de garantir a segurança dos trabalhadores, e também a geração de emprego e renda. Experiências como a produção a partir de internos do sistema penitenciário se revelam insuficientes e a prova está na distribuição de aventais, não indicada para sete hospitais do Estado listados pela SES.
Quando um equipamento cuja complexidade tecnológica é mínima, a oferta do próprio álcool em gel ou líquido também será comprometida e não vai continuar indefinidamente. Empresas mudaram a produção e fizeram doações, mas também esperam o sinal do governo para necessárias e longas parcerias. E elas são possíveis, como demonstrou o governo de Portugal, que está incentivando a indústria têxtil a costurar máscaras e roupas de proteção para abastecer hospitais, unidades de saúde e asilos. No início de abril, 200 empresas concordaram em reorientar a linha de produção para itens de baixo custo, como máscaras, aventais e capotes certificados, antes comprados com exclusividade da China. Somente a produção de máscaras bate a marca de um milhão de unidades por semana.
Iniciativa semelhante foi adotada pela Alemanha, que continua a comprar dos parceiros chineses, mas abriu uma linha de crédito para que empresas locais produzam EPIs. Quatro contratos foram fechados para o fornecimento de máscaras respiratórias, cirúrgicas e capotes. A indústria automobilística alemã também está disposta a adaptar as linhas de montagem para a produção de ventiladores mecânicos, outro gargalo sanitário revelado pela covid-19.
Esses são apenas dois exemplos de gestão que indicam a possibilidade de reduzir a dependência de insumos ofertados por um único fornecedor. Mato Grosso do Sul tem reconhecida e estabelecida indústria têxtil, mais valia que não deveria ser desprezada em momento econômico e sanitário tão sensível. E não seria preciso lembrar da capacidade do setor sucroalcooleiro, já parceiro nesta crise. Capitalizar os setores industriais, garantir a proteção de profissionais da saúde e, em consequência da população, é possível, mas é preciso vontade e uma pitada de espírito crítico. Afinal, vantagens são como favas, em algum momento não restará o que contar.