A sociedade brasileira não é a única a sentir-se impotente diante das organizações criminosas, que crescem a olhos vistos em poder econômico e bélico. Juízes e ministros da mais alta corte do Poder Judiciário admitem falhas no atual modelo de combate, mas estão preocupados em encontrar soluções para combater as quadrilhas, cujos poderes transcendem as fronteiras dos países, e quebrar o mecanismo da corrupção que assola a República.
A repressão contra o tráfico de drogas, responsável por mais da metade dos 15,7 mil presos em Mato Grosso do Sul, conforme o governador Reinaldo Azambuja (PSDB), tem efeito inverso ao proposto. A condenação à prisão de todos os presos por porte de drogas e outros crime de menor potencial ofensivo tem causado efeito inverso.
“Estamos alimentando o crime organizado”, avalia o juiz João Henrique Kaster Franco, estudioso da área criminal. Ao inchar os presídios, os juízes não estão reduzindo o poder do crime organizado, mas garantindo mão de obra barata para facções em ascensão, como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho. Os dois grupos praticamente dividem os presídios brasileiros.
Durante o Seminário sobre crimes de fronteira e o combate à lavagem de dinheiro, realizado pelo Conselho da Justiça Federal na quinta e sexta-feira em Campo Grande, Franco destacou que os chefões do tráfico não são atingidos pelas operações. Os mandantes ficam nos gabinetes lavando o dinheiro no mundo inteiro. “A Justiça não põe na cadeia quem manda no tráfico, não alcançamos essa pessoa”, avalia o juiz, que atuou durante 12 anos em vara especializada e atuou na fronteira com o Paraguai. “Estamos enxugando gelo”, frisa.
Como exemplo, ele cita o caso emblemático do HSBC, usado para lavar US$ 7 bilhões nos Estados Unidos. “Os EUA não fizeram nada nem na Lava Jato, mas precisamos pegar o dinheiro”, propõe.
O desembargador José Marcos Lunardelli, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, concorda que o encarceramento excessivo não tem sido a solução para combater o crime. “A cadeia se tornou fonte de mão de obra barata para o crime organizado”, concordou, destacando que as duas turmas criminais do tribunal estão preocupadas em unificar os critérios para a aplicação das penas e tentar frear o crescimento dos batalhões das facções criminosas.
A evolução do tráfico foi contada pelo ex-superintendente regional da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul e ex-adido da corporação em Assunção, delegado aposentado Edgar Paulo Marcon.
Com mais de três décadas de carreira, que começou como agente federal em Ponta Porã, ele contou que a prioridade da PF até os anos 1990 era o contrabando de café, soja e uísque. “Até os anos 90, nunca tinha visto cocaína”, destacou, sobre a experiência na fronteira com o Paraguai.
Somente no final da década de 90, com a chegada de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-mar, chefe do CV, a Coronel Sapucaia, o tráfico começou a ganhar as atuais proporções. Até então, a produção de maconha era familiar no território paraguaio. O narcotraficante eliminou o patriarca João Morel, um dos pequenos traficantes da região, e assumiu todo o processo do tráfico, do plantio à comercialização da maconha.
O novo ciclo ocorreu com a chegada do PCC, que teria feito aliança com um dos chefões da região de fronteira, o empresário Jorge Rafaat, que acabou sendo executado de maneira cinematográfica.
Para o delegado, a região de fronteira está dividida. O Comando Vermelho controla a região de Coronel Sapucaia, enquanto o PCC tem o comando das regiões de Ponta Porã, Bela Vista e Foz do Iguaçu.
O principal desafio para combater as facções criminosas é a mudança constante dos chefes. Além disso, a falta de efetivo para a PF na fronteira é outro problema. Em alguns casos, a corporação mobiliza todo o efetivo para garantir a escolta de presos, por exemplo.
O narcotráfico aposta em novas tecnologias. Antes, o Paraguai tinha duas produções anuais de maconha. Atualmente, graças aos modelos transgênicos, existem seis ou sete variedades da planta, o que permite ao tráfico realizar até seis safras anuais.
Um das estratégias eficientes é a destruição de plantações de maconha no Paraguai. De acordo com o juiz José Henrique Kaster Franco, uma análise de satélite feita pela PF revelou que as ações não destroem nem 10% da produção paraguaia.
Um dos problemas é a falta de recurso. De acordo com Marcon, no ano passado, os policiais brasileiros apreenderam 350 toneladas de maconha. Duas ações feitas pela PF e pela Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai destruíram 1,9 milhão de pés de maconha, o que representa mil toneladas da droga, três vezes o total apreendido em um ano. O montante só não foi maior porque o Governo brasileiro só disponibilizou recursos para garantir duas das cinco ações previstas.
Além de mais poderosos e com maior potencial bélico, os criminosos estão mais violentos. Para o juiz da 11ª Vara Federal de Fortaleza, Danilo Fontenelle, que julgou o famoso assalto ao Banco Central, a barbárie vem sendo praticada pelos dissidentes das facções, com idades entre 17 e 21 anos, que se mostram mais perversos ao decapitar os adversários e gravar as execuções para impor o terror.
Para mudar esta situação, que inclui o combate à corrupção, o Brasil teve avanços nos últimos tempos. A avaliação é do ministro aposentado do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Gilson Dip, que fez a conferência de abertura do evento.
Dip destaca a lei contra lavagem de dinheiro e a criação de varas federais especializadas neste crime em locais estratégicos. Graças a 3ª Vara Federal de Campo Grande, ainda sob o comando do juiz federal Odilon de OIiveira, foi possível o sequestro de mais de R$ 2 bilhões em contas bancárias e bens do crime organizado, que inclui fazendas, mansões, carros de luxo e aviões.
A 3ª Vara Federal, agora sob o comando do juiz federal Bruno Cezar da Cunha Teixeira, comanda a Operação Lama Asfáltica, maior ofensiva contra a corrupção no Estado, que já apontou desvios superiores a R$ 300 milhões e envolve figuras centrais da política regional, como o ex-governador André Puccinelli (MDB), o ex-deputado federal Edson Giroto, o operador Ivanildo da Cunha Miranda e o empresário João Amorim.
O ministro explica que a criação das varas federais especializadas foi bastante contestada, mas que acabou ganhando o aval do Supremo Tribunal Federal. Ele atribuiu o êxito da Lava Jato, maior operação de combate à corrupção na República, à criação da 13ª Vara Federal em Curitiba, comandada pelo notório juiz Sérgio Moro.
A delação premiada, incipiente em Mato Grosso do Sul, foi fundamental para alavancar a apuração e punição dos envolvidos nos esquemas criminosos. Neste ponto, o ministro critica a possibilidade de imunidade penal ao colaborador, como ocorreu com a delação premiada da JBS, que envolveu 1,7 mil políticos e causou polêmica sem precedentes ao conceder o perdão judicial aos empresários Joesley e Wesley Batista. O benefício acabou revogado.
O desembargador Abel Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, destaca que a lei é clara de que a colaboração premiada não vale como prova única. As informações do delator devem ser confrontadas com provas para levar à sentença condenatória.
Para que a colaboração premiada seja aceita, o colaborador deve se comprometer a dizer a verdade, entregar todos os integrantes, a hierarquia da organização criminosa e a recuperação parcial ou total da quantia envolvida nos crimes. O ponto controverso é o que obriga o colaborador a dizer a verdade, porque afrontaria a Constituição, que garante o direito à defesa e ao silêncio para não produzir prova contra si.
Finalmente, além dos novos mecanismos, o combate ao crime organizado e à corrupção exige mudança de postura da sociedade. Conforme Fontenelle, é preciso acabar com o Ministério Público preguiçoso (que fica a espera do trabalho ser feito pela polícia), do advogado esperto, dos falsos profissionais (polícia de expediente), juízes bonzinhos e sociedade indiferente.
“Não podemos ser ingênuos em relação ao combate ao crime organizado”, reforça o magistrado cearense.
No caso da corrupção, ele propõe a inspeção judicial, para levar o político responsável pelos problemas a conferir pessoalmente as consequências de seus atos, como a miséria, o caos na saúde, o abandono dos bairros, a falta de saneamento básico, entre outros problemas que chocam a população, mas não constrangem os corruptos.
Ele defende a tese que o crime organizado não destrói apenas vidas, mas atinge milhares de destinos. Cita como exemplo de uma criança que não teve a chance de estudar e mudar de vida por causa da falta de escola, da pobreza, da miséria, da falta de hospitais, da falta de dignidade.
Com o seminário, conduzido pelo ministro Raul Araújo, do STJ e corregedor nacional de Justiça, o Poder Judiciário mostra que está preocupado em se aperfeiçoar e discute as melhores soluções para ganhar esta guerra. Admitir os pontos fracos é apenas o primeiro passo. O debate continua e a sociedade só tem a ganhar com eventos semelhantes.
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