O cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância é o primeiro passo para acabar com o famoso “jeitinho brasileiro” de manter a impunidade da corrupção. A polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal, de mudar o entendimento de três anos atrás, acirrou os ânimos e mantem a temperatura do debate político, principalmente, na sociedade cansada de ver denúncias de corrupção, mas sem punição dos corruptos.
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Em Mato Grosso do Sul, onde um médico acusado de mutilar 175 mulheres só foi preso após três décadas do primeiro crime e apenas um político poderoso foi condenado por desviar dinheiro público, é visível e enorme a revolta com o STF. Até advogados estão divididos sobre o tema.
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Até quem deu uma mãozinha para a indignação popular, ao tirar os ocupantes do foro privilegiado da mira dos promotores, condenou a decisão. “Foi uma lástima”, afirmou o procurador-geral de Justiça, Paulo Cezar dos Passos.
Nem a OAB/MS (Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Mato Grosso do Sul) escapou da controvérsia. A entidade foi autora de um dos recursos julgados pelo Supremo que levou à libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O presidente da ordem no Estado, Mansour Elias Karmouche, é contra a decisão dos ministros, de só prender após a sentença transitar em julgado.
“Decisão histórica, que resulta em cumprimento efetivo da Constituição, algo a ser comemorado”, destacou o advogado constitucionalista André Borges. Por outro lado, outro advogado do mesmo quilate, Newlley Amarilla, reprovou o desfecho do STF. “É um absurdo”, lamentou.
Da Constituição de 1988 até 2009, o condenado não causou celeuma em iniciar o cumprimento da sentença somente após o processo transitar em julgado. A situação começou a mudar a partir da indignação popular com a impunidade de dois casos famosos no Brasil.
Em 1999, o então senador Luiz Estevão (MDB) foi acusado de desviar R$ 169 milhões na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Ele foi cassado e acabou sendo condenado a 31 anos de prisão em 2006. Para escapar da prisão, a defesa do ex-senador protocolou 36 recursos em todas as instâncias do Poder Judiciário brasileiro para pôster o cumprimento da sentença. A história causou perplexidade e Luiz Estevão só acabou preso em 18 de novembro de 2016.
Outra história foi a do diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo, Antônio Pimenta das Neves, que matou a ex-namorada e jornalista, Sandra Gomide, com dois tiros em um haras em Ibiúna (SP), no dia 19 de agosto de 2000. Condenado a 19 anos e dois meses de prisão em 2006.
Pimenta das Neves apostou nos recursos infinitos da justiça brasileira e, apesar de toda a comoção do crime, só acabou iniciando o cumprimento da pena em 24 de novembro de 2011, a poucos meses da prescrição. Ele acabou preso após o ministro Gilmar Mendes, do STF, analisar o último recurso.
“Não pode eternizar o processo. É preciso ter momento para cumprir a pena e acabar com a impunidade”, defendeu Karmouche. Ele propõe uma solução intermediária, como iniciar a execução da sentença após o recurso ser analisado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), como propôs o ministro do Supremo, Dias Toffoli.
Por outro lado, o presidente da OAB/MS analisa que a sociedade brasileira quer a prisão em segunda instância, então, o parlamento tem o dever de mudar a Constituição e adotar a medida.
“É um retrocesso no combate à criminalidade, além de significar postergar a punição e ampliar a sensação de impunidade”, afirmou o chefe do MPE, Paulo Cezar dos Passos. No início deste ano, ele publicou uma portaria que proíbe os promotores e procuradores de investigarem denúncias de corrupção contra autoridades com foro privilegiado.
Até então, mesmo não tendo a prerrogativa de investigar, os integrantes do MPE tinham respaldo de portaria de 2010, emitida pelo então chefe do MPE e atual desembargador Paulo Alberto de Oliveira, que delegava poderes para investigarem crimes de corrupção. Agora, Passos, que se mostra indignado com o STF, limitou os promotores, blindando os acusados de corrupção com foro especial.
Newelley Amarilla aprovou a linha adotada pela ministra Càrmem Lúcia, do STF. “Em resumo, porque os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo, ou seja, as decisões promanadas pelos tribunais têm eficácia imediata. É a regra”, explicou.
“Ou seja, para se impedir a eficácia de um acórdão, a Constituição teria que ter previsto expressamente que em matéria criminal esses recursos automaticamente teriam efeito suspensivo. Mas ela não previu. Logo, pode-se prender depois que o Tribunal condenar, sendo exceção a liberdade, isto é, somente quando esses recursos forem recebidos no efeito suspensivo”, analisou.
Notório advogado e experiente na definição das novas regras do direito, o deputado federal Fábio Trad (PSD) defende a decisão do Supremo. “Minha opinião é que a decisão deve ser respeitada e acatada”, frisou.
“Entendo que agora o debate gira em torno do princípio da tripartição dos poderes: na hipótese da PEC ser votada e permitida a execução antecipada da pena, qualquer partido político voltará ao STF para requerer a declaração da inconstitucionalidade. O STF voltará a decidir como ontem (quinta-feira). E assim o cachorro correrá em volta do próprio rabo indefinidamente. Defendo que a decisão seja acatada e o país volte a sua atenção para o que realmente importa: combater a concentração de renda via reforma tributária”, propôs o parlamentar.
O deputado rechaça as acusações de que não combate os crimes de corrupção no Brasil. “Impunidade no País que tem a terceira maior massa carcerária do mundo? Combate-se a corrupção prendendo corruptos através prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária e prisão como pena, além de medidas preventivas”, defendeu.
O assunto deve continuar incendiando o Brasil nos próximos meses e até anos. Caso o Congresso mude a Constituição, os ministros do Supremo podem voltar a discutir o tema e acatar a vontade popular.
Em último caso, a insegurança jurídica pode continuar, porque dois ministros, Celso de Mello e Marco Aurélio, devem se aposentar ainda no mandato de Bolsonaro e os novos integrantes da corte podem ser favoráveis à prisão em segunda instância, formando maioria pelo novo entendimento.
A prisão em segunda instância não é o único problema da Justiça brasileira, que recebe os maiores salários do mundo, mas não garante os serviços de primeiro mundo. É preciso acabar com a morosidade do Poder Judiciário para o Brasil, como mais um passo para mudar a nossa fama de impunidade.